Flávio Pechansky* e Sérgio de Paula Ramos**
"O uísque é o melhor amigo do homem. É um cachorro engarrafado." (Vinícius de Moraes, que morreu cedo por conta de seu alcoolismo)
A Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que a cervejinha, propagandeada como inocente, não é assim tão inofensiva. Entre 10% e 12% da população torna-se dependente do álcool. Em 2023, 20,8% dos adultos do Brasil tiveram motivos para parar de beber por abusar ou por depender do álcool.
O beber abusivo está associado a mais de 200 doenças e aumenta o risco de câncer, além de ser o principal fator em 5,3% das mortes mundiais. Também está associado a mortes e a colisões no trânsito, além de contribuir para homicídios e para suicídios.
Não tem cor ou raça
A impressão social é que o alcoolismo é mais frequente nas camadas menos favorecidas. No entanto, é democrático. Existe em todos os níveis sociais e em todas as raças. Mas sua expressão na população é desigual, pois o acesso à saúde é difícil para muitos, gerando distorções, como tratamentos sem comprovação científica.
Falta conscientização
Mesmo sendo a doença psiquiátrica mais prevalente e ainda que tenha tratamento conhecido, o alcoolismo não tem no Brasil o seu "mês com cor", como o câncer de mama (Outubro Rosa) ou de próstata (Novembro Azul), talvez pelo fato de que a massiva propaganda feita pelas cervejarias induza a população a pensar que todo mundo bebe e que não há chance de se divertir sem bebidas alcoólicas. Isso não é verdade, pois, se, por um lado, 20,8% da população tem problemas porque bebe, por outro, 56% da população declara-se abstêmia ou que bebe menos que uma vez por mês.
O que caracteriza o uso nocivo
Trata-se do comprometimento da capacidade de controlar o consumo de bebidas alcoólicas. Como consequência disso, há o surgimento de problemas clínicos ou mentais.
Tipicamente, esses bebedores, quando começam a ingerir bebidas alcóolicas, tornam-se imprevisíveis. Em muitas ocasiões, bebem e nada acontece; mas, em outras tantas, geram problemas.
Quando esse beber torna-se mais frequente, ou mesmo contínuo, surge a dependência de álcool, que se caracteriza pelo forte desejo de beber, também conhecido por fissura por beber. Com isso, a ingestão das bebidas alcoólicas ganha relevância, em detrimento de outras atividades, e persiste, apesar dos danos.
Com a continuidade desse tipo de consumo, a dependência vai se instalando. Pode ocorrer de o bebedor ir ficando mais "forte" para o beber. Trata-se do aumento da tolerância. Outro evento frequente é o desconforto quando o consumo é diminuído ou mesmo cessado. Insônia e irritação tornam-se frequentes e completam o quadro.
Abordagem terapêutica atual
A medicina ainda não tem a pílula da moderação, que possibilite ao paciente satisfazer-se com pouco álcool. Os tratamentos visam ajudá-lo a se abster em definitivo. Nem sempre isso é obtido no início do tratamento, porém é ilusão injustificada a ideia de que esses pacientes conseguirão aprender a beber ou a controlar o consumo de álcool.
O tratamento inicia com o diagnóstico correto, não só do estágio do alcoolismo, mas da coexistência ou não de comorbidades, como, frequentemente, os transtornos de humor e de ansiedade. Nesses casos, tratam-se ambas as patologias simultaneamente. O paciente deve saber que, para tratar as comorbidades, as medicações perdem sua potência quando bebidas alcoólicas são consumidas.
Uma vez desintoxicado (em casa ou em uma clínica, de acordo com a gravidade), estão indicadas entrevista motivacional, técnicas de prevenção de recaída e terapias cognitivo-comportamentais. A frequência aos grupos de Alcoólicos Anônimos (AA) é sempre indicada, pois sustenta a abstinência em uma atmosfera tão segura e privativa quanto o consultório médico.
Se Vinícius tivesse tratado corretamente seu alcoolismo, teríamos podido aproveitar mais sua genialidade.
* Psiquiatra, Professor Titular do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFRGS
** Psiquiatra e psicanalista, membro titular da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina
Parceria com a Academia
Este artigo faz parte da parceria firmada entre ZH, GZH e a Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM). A estreia foi em março de 2022, com a reportagem "Câncer: do diagnóstico ao tratamento", e está na sua terceira temporada. Uma vez por mês, o caderno Vida vai publicar conteúdos produzidos (ou feitos em colaboração) por médicos integrantes da entidade, que completou 30 anos em 2020, conta com cerca de 90 membros de diversas especialidades (oncologia, psiquiatria, oftalmologia, endocrinologia, otorrinolaringologia etc) e atualmente é presidida pela endocrinologista Miriam da Costa Oliveira, professora e ex-reitora da UFCSPA.