Por Flavio José Kanter
Médico, autor do livro “Bom Dia para Você, com um Sorriso” (2020)
Pessoas na minha faixa de idade corriam alto risco, se contraíssem covid-19, antes de receberem vacina. No primeiro ano, formas severas da doença, com necessidade de UTI, matavam um a cada quatro de nós. Na roleta russa, o risco de morte é um em seis. Covid matava mais do que roleta russa.
Em setembro de 2021, eu mantinha os melhores cuidados, já sob razoável proteção de duas doses da vacina. A observação do que ocorria gerava muitas reflexões. Seriam minhas percepções iguais as dos meus colegas médicos?
Mandei mensagem para 40 médicos de meu relacionamento pedindo que, se pudessem e quisessem, enunciassem de uma a três características da nossa profissão na pandemia. Respostas podiam ser curtas. Eu não revelaria autor. Esperava que uns 10 atendessem ao pedido. Recebi 23 respostas, que geraram uma lista com dezenas de características. Havia uma vontade de se manifestar muito maior do que eu esperava. Esse material merece compartilhamento.
O primeiro impacto foi lidar com uma doença nova, de imensas proporções, da qual nada se sabia. Era preciso nos proteger e orientar sobre medidas de prevenção sem saber exatamente o que funcionaria. Éramos questionados, e as dúvidas que nos expunham também eram as nossas. Médicos são acostumados a lidar com coisas que não sabem, mas sempre houve como e onde buscar respostas. Agora não era assim.
A informação não existia.
Velhos médicos sentiram-se culpados por terem de deixar para os de menor risco o atendimento a pacientes. Reduzimos a dimensão do eu-tu, que é tão significativa no atendimento de pessoas. A consulta remota ganhou um espaço até então sem precedentes.
Pacientes, colegas, amigos e familiares adoeceram, muitos morreram. O medo de se contaminar, de levar a doença para outros, inclusive familiares, tornou-se real. Um médico contou que se sentia como entrando numa jaula com leões quando atuava na emergência, em UTI, nas atividades de maior risco. Ter pacientes que adquiriram a doença quando foram atendidos por outros motivos, inclusive cirurgias, não foi fácil. Um disse que o sentimento do médico da linha de frente era semelhante ao de médicos judeus em campos de concentração, buscando ajudar outras pessoas que estavam sob a mesma ameaça que eles próprios.
Informações sem comprovação, ou já comprovadamente falsas, tornaram-se comuns. Foi difícil lidar com práticas que estavam em discordância com o que se sabia.
Uma dificuldade imensa foi a politização dos conceitos relativos à doença. Era difícil aceitar que pessoas adotassem condutas com as quais não se concordava. A polarização foi inevitável e só dificultou. Debates se acirraram sem beneficiar o controle da epidemia nem dos casos atendidos. A inexistência de uma sólida política sanitária unificada no país sabotou o enfrentamento da crise.
Por tudo isso, a confiança na medicina e nos médicos sofreu um abalo e só vai ser recuperada ao longo de muito tempo.
A confiança na medicina e nos médicos sofreu um abalo e só vai ser recuperada ao longo de muito tempo.
Nas fases de pico da pandemia, com um número extraordinário de pessoas internadas em hospitais e UTIs, o esgotamento foi extremo. Era preciso muita resiliência, encontrar energia para atender tantos doentes tão graves. Os médicos se tornaram o único elo entre pacientes e seus familiares, a necessidade de isolamento obrigava a intermediar a conexão das famílias. Além da exaustão e do medo de adoecer e de transmitir o vírus a outros, era preciso dispor de imensas reservas de afeto.
Outras doenças que vinham em acompanhamento foram relegadas. Era preciso retomar seus cuidados. Muitos exames de prevenção, seguimento de doenças crônicas e tratamentos de câncer que não deveriam ser postergados sofreram atrasos inconvenientes.
O distanciamento social custou a muitos o afastamento e até a perda do trabalho e de rendimento: desemprego. Já os médicos tiveram mais demanda de trabalho, e o paradoxo de risco e medo de adoecer, morrer, infectar familiares e pacientes, por outro lado, manteve o trabalho e a renda.
No início, vimos homenagens aos heróis da pandemia, panelaços, matérias na mídia, inúmeras formas de reconhecimento aos abnegados profissionais da saúde. Terminada a pandemia, haverá a manutenção desse reconhecimento por parte da sociedade? Se houver, como será? Não se sabe. Ninguém sabe. Não há precedentes. Aguarde a continuação.