Bastaram 12 segundos de vídeo mostrando um pé que “dançava” sob um cobertor azul ao som de Twist and Shout, dos Beatles, para emocionar e surpreender as redes sociais. A imagem do paciente com covid-19 gravíssima, entubado e cercado de equipamentos em um leito do Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), simbolizava a vida — e viralizou.
Depois de 119 dias de internação em duas instituições, o açougueiro André Miranda da Silva, 40 anos, recebeu alta do HCPA na semana passada para dar seguimento à recuperação em casa, em Canoas, na Região Metropolitana, ao lado da filha e da esposa — Daisy Holstein Miranda da Silva, 45, chegou a se despedir do marido por chamada de vídeo em um dos momentos mais dramáticos da doença.
A unidade 7C do CTI do HCPA costuma disponibilizar rádios para que os pacientes se distraiam com música ou noticiário — a prática virou uma espécie de ritual de sorte entre as equipes assistenciais, na torcida pela recuperação dos infectados pelo coronavírus. Em uma noite de maio, a enfermeira Nivea Shayane Costa Vargas se esforçava para entender o que André queria dizer. Com traqueostomia (incisão feita no pescoço, na altura da traqueia, para permitir a colocação de uma cânula para conectar ao respirador), ele não conseguia falar.
— Está com calor? — questionou Nivea ao ver a movimentação dos pés.
A enfermeira pediu ajuda à colega Rani Simões Resende.
— Quer dançar? — perguntou Rani, recebendo resposta afirmativa e procurando uma trilha mais animada no celular. — Gosta de Beatles?
E então André se empolgou ainda mais, dançando como podia, enquanto Nivea correu para gravar a cena. Dali, a sequência ganhou a internet. No Diário do Front, projeto de GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora que relatou a rotina de profissionais da linha de frente do combate à pandemia, a história foi contada pela enfermeira intensivista Isis Marques Severo. O episódio comoveu o público, e uma pessoa levou presentes para André na recepção do hospital — um pôster e CDs da banda britânica.
A médica intensivista Patrícia Schwarz explica que André desenvolveu covid-19 severa, com comprometimento quase total dos pulmões. Transferido do Hospital Universitário de Canoas, em uma viagem de cerca de 20 quilômetros que exigiu três horas para o deslocamento da ambulância, dado o estado delicado do paciente, André logo precisou ser submetido à oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês), conhecida como pulmão artificial. Trata-se de um sistema que retira o sangue do corpo — enriquecendo-o com oxigênio e removendo o gás carbônico — e o manda de volta para o organismo. O procedimento é caro e complexo, exige alta capacitação para operá-lo e não é custeado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), dependendo de verbas de pesquisa ou doações.
André teve complicações, mas a estabilidade dos outros órgãos permitiu a retirada gradual dos sedativos e o início da reabilitação, com exercícios de força. Cogitou-se um transplante pulmonar, possibilidade que o deixou assustado e cabisbaixo por alguns dias. A melhora foi gradual, lenta, mas o intenso desejo de retornar para casa ajudou a viabilizar os avanços.
— A partir do primeiro dia em que ele se sentou no leito, parece que virou a chave. No início, eram até oito pessoas ao redor para garantir a segurança ao ficar de pé. Ele era muito, muito colaborativo. A tranquilidade, a positividade dele foram muito importantes. A equipe estava muito engajada. Todos queriam ficar com o André. Foi um período bem difícil na UTI, em que vários pacientes não sobreviveram. Era uma esperança vê-lo ali — recorda Patrícia, coordenadora do Programa de ECMO Adulto do HCPA.
Nos quatro meses em que esteve afastado da família e dos amigos, o açougueiro recebia até 20 mensagens de áudio e vídeo por dia — Andriely, cinco anos, pedia que o papai voltasse logo. Formou-se uma corrente ininterrupta de orações. Daisy se mudou para a casa dos pais com a filha. Sem condições emocionais de trabalhar, sempre aflita à espera dos telefonemas do hospital, perdeu o emprego em uma assessoria de cobrança e teve de tirar a menina da escola particular.
— Foi um milagre — crê Daisy, passado o pior.
Ao ter alta do CTI, André, protegido do frio por um cobertor do Grêmio, recebeu uma homenagem dos cuidadores, que seguravam balões dourados e azuis e entoaram a letra de sua música preferida, ensaiada com antecedência e tocada ao violão. “Hoje o meu milagre vai chegar / Eu vou crer, não vou duvidar / O preço que foi pago, ali na cruz / Me dá vitória, nesta hora”, diz uma estrofe de Milagre, de André Valadão.
— A palavra é gratidão, né? Uma vitória. Tudo o que aconteceu ali... Aquela emoção toda, todo mundo que me ajudou, os médicos, os enfermeiros, os técnicos. Passou um filme na cabeça — lembra o paciente.
Durante a entrevista a GZH, Daisy fez questão de salientar que a canção também embalou a época em que André, contrabaixista fã de gospel, queria começar o namoro.
— Naquela época, o milagre era eu — diverte-se a companheira de 10 anos de relacionamento.
Em casa desde 26 de julho, quando foi recepcionado com festa e por um grupo vestindo camisetas com sua foto, André utiliza um cilindro de oxigênio com óculos nasal. Orgulha-se por ter saído da ambulância caminhando. Passará por sessões de fisioterapia motora e respiratória e tem consultas de revisão agendadas para setembro. Já consegue abrir garrafas de água e refrigerante sem auxílio, o que considera uma grande conquista. Sente saudade do emprego e do contato com os clientes do mercado, a quem sugere receitas com diversos cortes de carne: vazio recheado, picanha no sal, carne de panela com aipim, frango recheado com queijo e presunto. Reflete sobre o que enfrentou:
— Às vezes, passamos tanto tempo correndo, trabalhando, pensando nas atividades e esquecemos um pouco do amor da família, do lar. Isso tudo fez com que eu pensasse agora. Temos que ter o amor da família, estar conectados com Deus. É isso que vamos levar, nada mais. Tudo o que guardamos, tudo o que compramos, tudo o que nos preparamos para ter, nada é mais importante do que a família, o amor que temos pelas pessoas e o amor que fazemos que as pessoas tenham por nós.