Trabalhadora da indústria calçadista, R. morou quase toda a vida em Rolante, no Vale do Paranhana. Nunca residiu na cidade vizinha de Riozinho, nem conhece pessoas lá. Mesmo assim, transferiu seu título para este município, onde votou na última eleição. Fez isso em troca de dinheiro, bancado por políticos locais, afirmou ela ao Grupo de Investigação da RBS (GDI). A reportagem esteve com a eleitora no endereço em que ela informou residir à Justiça Eleitoral.
— É a rua que eu declarei, mas não conheço aqui. Não conheço Riozinho — admitiu, enquanto demonstrava surpresa com a beleza do local.
Os nomes dos eleitores que foram entrevistados nesta reportagem serão preservados. Situações como a de R., que transferiu o domicílio eleitoral para votar em uma cidade em que nunca morou e em candidatos que desconhecia, não são incomuns. Suspeitas de fraude desse tipo, cometidas mediante suborno, espalham-se pelo Brasil. Dois indicativos deixam as autoridades em alerta para possíveis irregularidades desse tipo: quando o município tem mais eleitores do que moradores e quando há um salto súbito no número de votantes — Ministério Público e Polícia Federal investigam alguns desses locais.
No país, 82 municípios tiveram aumento de eleitores em percentuais de até 46% em 2024, mostra recente levantamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A maioria deles tem mais votantes do que habitantes. No Rio Grande do Sul, o maior aumento foi de 31% em quatro anos (em Xangri-lá, no Litoral Norte), sendo que uma cidade, Três Forquilhas (também no Litoral), teve 14% de crescimento em 2024. Mas dezenas de municípios têm mais eleitores do que moradores.
O GDI tomou conhecimento de algumas situações sob suspeita de transferência massiva de eleitores de uma cidade para outra, com objetivo de garantir a vitória de determinados candidatos. Os votantes teriam sido aliciados por políticos, mediante pagamento de suborno. Assim como R,. outros eleitores admitiram isso em entrevista à reportagem.
Essas situações geraram ações de impugnação eleitoral, movidas pelo Ministério Público ou por partidos, amparadas em três fundamentos:
- Abuso de poder econômico
- Corrupção
- Fraude
A falsificação do domicílio eleitoral pode se enquadrar, em tese, em quaisquer desses fundamentos, a depender as circunstâncias. Entra em princípio como fraude, mas pode se configurar em corrupção (se oferecida vantagem financeira) ou mesmo abuso de poder econômico (se os valores aportados na estratégia forem significativos). Os crimes podem ser atribuídos tanto ao candidato quanto ao eleitor que fraudou dados.
Em geral, os candidatos que se utilizam da manobra buscam convencer eleitores de localidades vizinhas a transferir o respectivo título de eleitor para a sua cidade, mediante oferta de dinheiro ou benefícios, como cargos em uma futura administração.
Há investigações em pelo menos duas cidades gaúchas.
Riozinho: dinheiro, remédios e transporte em grupos no dia da eleição
Pequeno município do Vale do Paranhana, conhecido pelas matas densas e belas cachoeiras, Riozinho tem 4.473 habitantes e 4.537 eleitores. Além dessa peculiaridade, vivenciou crescimento de 14% no número de votantes entre 2020 e 2024. Dezenas dessas mudanças de domicílio eleitoral ocorreram meses antes do último pleito municipal, o que é considerado pelas autoridades um indício forte de irregularidade. Tanto que foram abertas duas investigações a respeito: uma ação na Justiça Eleitoral pedindo anulação da eleição majoritária e outra investigação, por parte da Polícia Federal, para apurar crime de fraude e corrupção.
Algumas pessoas afirmaram ao GDI que houve esquemas de cooptação eleitoral. É o caso de R., personagem que abre esta reportagem. Ela votava em Santo Antônio da Patrulha, mas morou mais de 40 anos em Rolante. Nunca residiu em Riozinho, cidade situada na mesma região, mas transferiu para lá seu título de eleitor em 2024, em troca de dinheiro. Ela diz que fez isso a pedido de cabos eleitorais do candidato que acabou se elegendo prefeito de Riozinho, Airton Trevizani da Rosa, o Alemão (PL), e do vice dele, Adriano Paulo Bauer (União). A chapa venceu o pleito com 3% de diferença em relação ao adversário, Alceu Marcos Pretto, o Marquinhos (PDT).
A cooptação, segundo R., teria ocorrido em duas etapas: primeiro, trocou o domicílio eleitoral para Riozinho. O endereço escolhido para que informasse residência era no Chuvisqueiro, distrito onde fica a mais famosa cascata daquele município — e que não conhecia. Depois, vendeu o voto. Em 5 de outubro, dia da votação, foi buscada em Taquara (onde reside no momento) por uma van, junto com outras duas pessoas. O veículo foi até o portal de Rolante, onde outros passageiros entraram e rumaram para Riozinho. O transporte de eleitores por parte de candidatos também pode configurar crime.
Eram umas 10 pessoas, eu não conhecia ninguém. A votação aconteceu no centro da cidade, num ginásio. Cada eleitor ganhou uma "colinha" com nome de candidatos a vereador e a prefeito da chapa opositora (vencedora do pleito)
TRABALHADORA DA INDÚSTRIA CALÇADISTA
R. afirma que o próprio candidato Alemão apareceu para cumprimentar seus novos eleitores, junto com cabos eleitorais a serviço dele.
— Para mim, eles (os cabos eleitorais) deram R$ 250, parte antes, parte depois de votar — detalha R, cujo relato foi enviado à Justiça Eleitoral e à Polícia Federal.
Outros dois votantes revelaram ao GDI terem mudado o domicílio eleitoral em troca de dinheiro. A dona de casa J. diz que ela e outros cinco familiares também foram pagos para votar no candidato Alemão. Desses, duas irmãs não moram em Riozinho.
Foram até minha casa, ofereceram dinheiro, deram panfletinhos dos candidatos. Nos buscaram de carro e levaram para votar. Compraram minhas irmãs também, transferiram o endereço eleitoral delas para cá. Tinha uma que precisava de remédio, conseguiram os medicamentos. Deram remédio para o meu filho. Dão ajuda pra gente, mas isso é comprar, né. Não pode, mas foram insistentes.
DONA DE CASA
Um empresário da cidade relata ter sido procurado pelo candidato a vereador Clédio Petry (UB), conhecido como Mamuty, com o pedido de que conseguisse de 10 a 15 contas de luz.
— Era para viabilizar transferência de eleitores. Bastava assinar as contas dizendo que moravam naquele local e poderiam votar em Riozinho. Fui enrolando. Não passei, porque eu iria me incomodar — finaliza ele.
Mamuty se elegeu.
Contraponto
Procurado pela reportagem, o prefeito de Riozinho, Airton Trevizani da Rosa, limitou-se a dizer que "desconhece" o fato e que não tem "nada a falar".
Adriano Bauer, vice-prefeito de Riozinho, respondeu:
"Respeito sua profissão e seu interesse em um assunto tão relevante. E em relação aos teus questionamentos, desconheço inteiramente o assunto e por esse motivo me abstenho de dar qualquer tipo de opinião. Quando tivermos divulgações em meios oficiais, estaremos a disposição para possíveis esclarecimentos".
Clédio Petry disse que não tem conhecimento sobre o assunto.
Gramado dos Loureiros: uso de lideranças indígenas nas fraudes
Município do extremo norte do Rio Grande do Sul, com forte presença indígena na população, Gramado dos Loureiros tem 2.014 habitantes e 2.590 eleitores, segundo o último Censo do IBGE e os dados da Justiça Eleitoral. Teve crescimento de 19,6% no número de votantes entre 2020 e 2024, sendo 11,9% apenas no ano passado, o que chama a atenção das autoridades.
Uma ação protocolada na Justiça Eleitoral por opositores aponta o prefeito eleito Artur Cereza (União) como responsável pelo aliciamento de eleitores em cidades vizinhas. Teria contado com ajuda de chefes indígenas da região. Ele não retornou os contatos da reportagem.
A reportagem teve acesso a depoimentos de envolvidos. Um deles, de origem caingangue, atuava como motorista contratado pela prefeitura e concordou em buscar familiares e conhecidos em aldeias situadas em outros municípios. Ele afirma ter transportado mais de 200 indígenas para transferirem títulos de eleitor em 2024, gente vinda dos municípios de Planalto, Nonoai e até de Chapecó (SC). Outro indígena, morador de Gramado dos Loureiros, admite que realizou mais de 20 transferências de títulos de caingangues que residiam em outros municípios. Ele diz ter feito isso a pedido da candidatura que ganhou o pleito.
Eu acompanhava cada eleitor que eles levavam. Busquei quatro, o resto foi com outros motoristas. De Planalto, vieram uns 50 votos, mais ou menos. Tinha uns que eles pagavam. Fui mostrar a casa dos eleitores pra eles, onde "moram", para eles pegarem e levarem pro cartório de Nonoai. Nas declarações, aquelas pessoas moravam na aldeia de Benjamim, mas não moravam. Nenhum morava.
MOTORISTA INDÍGENA CONTRATADO DA PREFEITURA
O GDI teve acesso a outros quatro depoimentos de pessoas que reconhecem terem aliciado eleitores em cidades vizinhas. O prefeito de Gramado dos Loureiros, Artur Cereza, não deu retorno aos pedidos de entrevista.
Como funciona a fraude
Para transferir o local de votação, o eleitor precisa comprovar vínculo residencial, afetivo, familiar, profissional ou comunitário com a nova cidade. Segundo as investigações, há indícios de uso de contas de luz, água e esgoto como comprovantes de residência falsos emitidos por servidores públicos.
Qual é a punição para os eleitores
Caso comprovadas as irregularidades, os eleitores podem ser enquadrados nos artigos 289, 290 e 299 do Código Eleitoral, com penas de dois a cinco anos de prisão, mais multa.