O governo Lula anunciou ontem o resultado das contas públicas em 2024 com cumprimento da meta de déficit primário (receitas menos despesas, sem contar os gastos com a dívida federal). É bom – melhor do que não alcançar o objetivo –, mas não suficiente, alerta Marcus Pestana, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), espécie de "xerife de finanças públicas". Em julho do ano passado, Pestana havia apontado "risco de estrangulamento" do orçamento da União. Agora, diz que ainda existe.
É importante ter alcançado a meta de déficit primário?
Sim, porque seria uma desmoralização não cumprir, em um país que já enfrenta uma crise de credibilidade com o pacote de corte de gastos. Atingir a meta permite manter o arcabouço fiscal, porque esse foi seu primeiro teste.
Por que existe um déficit para efeito de meta e outro "completo"?
Existem três conceitos: o déficit nominal, que inclui os gastos com a dívida, o déficit primário sem desconto (R$ 43 bilhões, equivalente a 0,36% do PIB), e o com desconto (R$ 11 bilhões, ou 0,09% do PIB). Esse "com desconto" é uma licença especial. Vale para efeito de meta, porque a maior parte, de cerca de R$ 31 bilhões, envolve a ajuda para o Rio Grande do Sul. Como havia uma situação emergencial, houve esse acordo com o Congresso.
O que vai para a dívida, no entanto, são os R$ 43 bilhões do déficit sem desconto, não?
Para efeito da dívida, gasto é gasto. Isso pode levar a erro na discussão nacional. Parece que a situação está confortável, com déficit praticamente zero, mas nas atuais condições brasileiras, para estabilizar a trajetória da dívida (frear o aumento) seria necessário um superávit equivalente a 2,5% do PIB (ao redor de R$ 250 bilhões de resultado positivo da diferença entre receitas menos despesas).
Em novembro, o déficit sem desconto era de R$ 66,8 bilhões. Como foi possível reduzir tanto em um mês?
A maior parte veio de dividendos (remuneração aos acionistas de empresas estatais) pagos por Petrobras e BNDES. Houve antecipação, um pagamento atípico, fora do normal.
Isso seria contabilidade criativa?
Não, o Paulo Guedes (ministro da Economia no governo Bolsonaro) havia feito o mesmo em 2022. Nos últimos quatro anos, os dividendos das estatais cresceram muito em relação às últimas duas décadas. Não é uma novidade do governo Lula.
No final de 2024, apareceram projeções de déficit de R$ 250 bilhões, haveria algum cálculo oculto com uma cifra dessa magnitude?
Não, os números são estes. O problema não está na cifra.
Onde está?
O Brasil segue rumo a uma situação de estrangulamento insustentável. Não basta só cumprir meta e gerar superávit. A qualidade do gasto caiu muito, o que fez com que o investimento caísse em termos reais. Cerca de 80% da receita primária líquida de R$ 2,16 trilhões é consumida em previdência, pessoal, BPC, Bolsa Família, seguro desemprego e abono salarial. Assim, a capacidade de o governo governar está indo pelo ralo.
Por que?
As medidas de aumento de receita já se esgotaram, só resta agora cortar gastos. É importante lembrar que, antes de se chegar a esse valor, existe o gasto tributário, que são renúncias fiscais por incentivos e estímulos como Zona Franca de Manaus, Simples, isenção para filantropia, subsídios agrícolas, que já estão em mais de R$ 700 bilhões. É preciso mexer nisso.
O ministro da Fazenda tentou, mas não conseguiu. É viável?
O ponto é que não tem bala de prata, mas é preciso mudar a lógica. É preciso fazer uma reforma administrativa, não tanto para diminuir o gasto com pessoal, que no Brasil não é tão discrepante de parâmetros internacionais, até porque com o desconto da inflação caiu um pouquinho. Mas para evitar aumento futuro. É preciso encontrar uma alternativa. Nos Estados Unidos, quando o Congresso não aprova a ampliação do endividamento, serviços públicos são paralisados, ocorre o shut down. Empregados públicos de setores não essenciais ficam em casa, sem salario. O Brasil tem o orçamento mais rígido do mundo. Não há precedente de engessamento igual ao nosso.