Completando 150 anos, a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes é uma tradição em Porto Alegre. A celebração começou em 1875, quando foi lançada a pedra fundamental da primeira capela.
Apesar de a padroeira da Capital ser Nossa Senhora Mãe de Deus, a atribuição de protetora dos navegantes dada à mãe de Jesus reúne todos os anos milhares de devotos para pagar promessas, fazer pedidos e agradecer graças recebidas.
Na religião católica, Maria tem mais de três mil títulos, que são formas diferentes de se referir à mesma figura materna. Em municípios banhados por rios e mares, Navegantes passou a ser uma celebração recorrente e até motivo para feriado, como na Capital.
A devoção que veio a originar a procissão em Porto Alegre vem de Portugal, com uma imagem trazida em 1871. Em razão de um incêndio que atingiu a antiga capela em 1910, a Nossa Senhora que é carregada até hoje pelos remadores é de 1913, mesmo ano de construção da nova igreja. A escultura foi trazida da Vila Nova de Gaia, na Ilha dos Açores, onde foi criada pelo escultor João A. Fonseca Lapa.
Se inicialmente a procissão de Navegantes era mais sobre as águas, uma situação que marcou o país fez com que o trajeto tivesse que passar por mudanças. Faltando poucos minutos para o começo do ano de 1989, o barco Bateau Mouche IV afundou na Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, matando 55 pessoas. Com o acidente, medidas de segurança fizeram com que o evento religioso virasse uma caminhada, algo que não agradou parte dos fiéis na época, conforme lembra o padre Remi Maldaner, 82 anos, que chegou à igreja há três décadas.
— Foi ali que começou a mudança. O próprio sistema marítimo passou a ser muito mais exigente, então não havia mais como continuar na água. Foi se solidificando a procissão pelas avenidas e ruas da cidade com aquela ideia forte da mãe que caminha com os seus filhos.
Atualmente, a procissão sai do centro de Porto Alegre, onde dias antes dos festejos a imagem de Nossa Senhora é levada em uma embarcação e fica disponível para visita dos fiéis. No dia 2 de fevereiro, a imagem percorre a Avenida Castelo Branco, enquanto os participantes cantam e rezam.
— A procissão continua tão forte também por causa de uma geração que ensina outra a continuar. Tínhamos remadores que não conseguiam mais carregar o barco ou estar na corda, mas já havia os netos e as netas pela primeira vez caminhando na corda. E havia já a outra geração carregando o barco — ressalta o pároco-reitor do santuário, padre Carlos José Feeburg, sobre a participação no translado para o Centro, que ocorreu no último domingo (19).
Igreja sofreu com enchentes
A proximidade com o Guaíba, cartão-postal da cidade, e o Rio Jacuí pode ter feito todo o sentido para o nome da igreja na Capital, mas também mostrou que, assim como nas embarcações, nem sempre haverá calmaria.
Duas grandes tormentas marcaram a história da comunidade na Praça dos Navegantes, perto das avenidas Castelo Branco e Voluntários da Pátria. A igreja enfrentou as enchentes históricas que cobriram a Capital em 1941 e, mais recentemente, em maio de 2024. Sem falar em outras inundações.
Se na década de 1940 a água chegou até quase o último degrau da escada, no ano passado o avanço foi de cerca de três metros, ficando perto do assento dos bancos na parte interna. Oito meses depois, o santuário ainda enfrenta dificuldades e teve que mudar a programação de outros anos para a festa.
Sem mesas e cadeiras do salão e com eletrodomésticos da cozinha estragados, não será possível preparar alimentos durante a celebração. Isso também impediu a realização de galetos e eventos para arrecadação de recursos.
O teto que fica acima da porta ficou danificado pela chuva dos últimos três anos e ainda está bastante comprometido, tendo que passar por um serviço de emergência. A diferença de material chama a atenção de quem olha para cima pelo contraste com o restante da igreja.
— Temos que fazer uma reforma, é capaz de ter que trocar todo o telhado. Nos deram um orçamento de R$ 500 mil a 700 mil iniciais, mas precisa ser feita uma reforma geral na igreja, ela sempre sofre muito. Agora quando as águas subiram de novo em Porto Alegre, no dia 1º, foi mais de meio metro de água no nosso pátio — explica o padre Carlos, ao se referir à chuva do começo de janeiro deste ano e demais estragos provocados nos últimos anos.
Cenário ficou mais complicado
Os recursos para a realização de obras em igrejas são arrecadados por meio de campanhas e doações dos próprios fiéis. No entanto, como grande parte da população que frequenta a paróquia também está se recuperando da enchente, o cenário ficou ainda mais complicado. O padre Remi, que era o antigo pároco, destaca:
— Estamos tentando recuperar o que foi perdido e, ao mesmo tempo, olhando nosso povo que perdeu tudo ou quase tudo. Então, também a nossa própria recuperação se torna difícil. Tantas pessoas como nós estão na mesma situação ou pior, e temos muito mais a tarefa de ajudar os outros dentro daquilo que é o possível.
Os percalços causaram um desânimo entre os frequentadores, fazendo com que o padre Carlos admitisse que ficou ansioso ao assumir a paróquia em agosto do ano passado.
— Isso eu vi no povo, às vezes um desânimo pelas situações que se está vivendo e não poder respeitar todas as tradições que eles tiveram. Alguns anos atrás, fazia-se a procissão no barco até a Ilha dos Marinheiros, onde tinha a comunidade dos pescadores, mas não se pode fazer mais porque todo o píer foi destruído pela enchente. Aqui é a mesma coisa, mas no fim estamos fazendo e confiantes em Deus, em Nossa Senhora e nas pessoas que sempre vêm prestar o seu auxílio — enfatiza o padre, mencionando que também recebeu apoio da prefeitura.
Três gerações de uma família
Representando a terceira geração de sua família a frequentar a paróquia, a professora aposentada Marinê Larini, 80 anos, lembra que desde criança estava acostumada com a água para chegar às celebrações:
— Já participei da procissão que vinha pelo rio, era uma menina ainda. Depois, a gente andava de barco aqui nos Navegantes, porque esse bairro sempre enchia de água. Para ir à missa, às vezes faziam pontes para a gente caminhar em cima de mesas, de tábuas. O bairro sempre foi ligado à água, quem sabe por ela ser a Nossa Senhora dos que navegam.
Marinê é filha de uma senhora que fez parte ativamente da história do Santuário Nossa Senhora dos Navegantes. Desde menina, Carolina Elenita Barcellos, ou dona Elenita, como era chamada, participou dos preparativos dos festejos e das atividades. Juntas, mãe e filha buscavam brindes para as brincadeiras e ajudavam nas rifas beneficentes.
Com o avançar da idade, dona Elenita teve que cuidar da saúde e acabou falecendo em agosto do ano passado, faltando apenas três meses para chegar aos 101 anos. O exemplo da mãe, que começou com a avó, inspiraram Marinê a seguir voltando para a procissão, mesmo já morando em outro bairro, na zona norte de Porto Alegre.
— Minha mãe participava desde pequena e trabalhou aqui voluntariamente até os 96 anos. Depois, não tinha mais condições de caminhar sem o andador, mas mesmo assim vinha, se sentava, vendia flores em prol da igreja. Continuo fazendo parte para honrar tudo que a minha mãe me deixou de fé e esperança — relata Marinê, emocionada.
Um novo tempo para superar o passado
A comemoração de 150 anos da procissão de Navegantes em Porto Alegre vem acompanhada de outro evento importante na Igreja Católica em 2025: o Ano Jubilar, ou Ano Santo, que geralmente é celebrado a cada 25 anos e tem origem na Bíblia, onde Deus pede um "ano de libertação". Antigamente, esse tempo sagrado era marcado pelo perdão de dívidas, pela devolução de terras e pela libertação de escravos.
Com o lema "A Esperança não engana", o Ano Jubilar 2025 traz uma mensagem de perseverança em tempos difíceis. Em sua fala, o Papa Francisco convidou os fiéis a perceberem a esperança como uma luz em meio à escuridão.
Para o padre Carlos, esse é o espírito que está movimentando a comunidade para superar todos os desafios trazidos pela enchente e para buscar essa esperança tão necessária.
— O Jubileu era um zeramento de toda a vida para recomeçar, para ter um novo ânimo e fazer. Então era toda uma reorganização da sociedade. É isso que queremos com esses 150 anos: fazer com que as pessoas readquiram a esperança, ou seja, esperar dias melhores para si, seus familiares e para toda a sociedade, principalmente a de Porto Alegre.