Uma das principais obras de mobilidade de Porto Alegre levou quase uma década para ficar pronta, mas sua utilização durou apenas três anos. Com interdição decretada em 6 de setembro, há dúvidas se a ciclovia da Avenida Ipiranga será recuperada pela prefeitura ou entrará para a história como uma estrutura pública cuja construção levou mais tempo que o uso integral.
Falta de manutenção, impacto de dragagens e as chuvas excessivas são apontados como possíveis motivos para o colapso parcial da via de 9,4 quilômetros de extensão que, desde o início, sofreu com falhas de planejamento e atrasos de execução. Autoridades, usuários e especialistas em engenharia agora debatem qual o melhor caminho a seguir: recuperar a ciclovia ou desativá-la de vez e começar um novo projeto. Enquanto não sai uma definição, ciclistas se colocam em risco ao circular entre carros ou nas calçadas, e muitos já preferem deixar a bicicleta em casa.
O ocaso da ciclovia, interditada em setembro, é um desfecho compatível com uma história marcada desde a origem por falta de recursos, morosidade e controvérsias. Antes mesmo de começarem as obras, em 2011, a localização da pista era motivo de atritos.
Enquanto o então prefeito José Fortunati era um entusiasta do projeto, o secretário estadual de Infraestrutura à época, Beto Albuquerque, temia a ocorrência de acidentes e até de uma eventual explosão pelo fato de que os frequentadores circulariam sobre tubulações subterrâneas de gás natural e debaixo de fios de alta tensão.
— Tenho a convicção de que os ciclistas estarão muito mais seguros na ciclovia do que circulando entre os carros — declarou Fortunati, antes de confirmar a continuidade das obras.
Jamais foi registrada explosão no eixo da Ipiranga, mas a via destinada às pedaladas enfrentou uma série de outros percalços até chegar ao cenário atual em que o prefeito Sebastião Melo não descarta sua desativação em favor de uma nova estrutura, possivelmente sobre o asfalto.
Um dos entraves foi a demora para a via ser implantada. O trabalho foi feito aos poucos, por partes, como contrapartida de empreendimentos privados na cidade. A primeira promessa oficial era de que a ciclovia, avaliada atualmente em cerca de R$ 5,5 milhões pelo município, ficaria pronta em 2012. O prazo foi adiado para 2014, para 2015, e nenhum deles confirmou. A conclusão só ocorreria em 2020.
A justificativa da EPTC era de que a demora no processo de liberação de novos empreendimentos acabava freando o avanço do novo pavimento — as empresas só precisavam executar as contrapartidas na fase de conclusão de seus empreendimentos.
Sem injeção de verba pública, o projeto chegou a ficar quase três anos estacionado: o trecho entre as avenidas Salvador França e Antônio de Carvalho foi inaugurado em 2015, mas somente no começo de 2018 os trabalhos recomeçaram em uma nova frente de 400 metros de extensão entre as vias Silva Só e João Guimarães.
Os trechos concluídos não ficaram livres de outros problemas. Um deles é a necessidade de desvios e estreitamentos de pista para driblar obstáculos como postes da rede de energia — fruto do esforço para acomodar uma pista para bicicletas em um espaço urbano que não previa essa finalidade e jamais foi adaptado de forma satisfatória.
— Em alguns pontos, tu não consegue nem enxergar quem vem no sentido contrário, e acaba batendo de frente. A gente apelidou esses locais de quebra-queixo. Bater de frente com outro ciclista pode causar bastante dano — afirma o ciclista e coordenador do programa de passeios coletivos PedAlegre, Juarez Pereira.
A tinta vermelha usada nos primeiros segmentos foi alvo de críticas por ficar escorregadia em períodos de chuva, o que levou a mudanças posteriores no tipo de pavimento escolhido. Além disso, a falta de manutenção adequada resultou em rachaduras acentuadas em partes da pista.
— É necessário investigar melhor o motivo do colapso da ciclovia. Mas a minha percepção é que o sistema cicloviário não é considerado uma estrutura de transporte. Colapsou e não vemos esforços para recolocar em operação. Uma faixa para carros certamente receberia um empenho grande para voltar a ser transitável — afirma o engenheiro civil e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Dornelles.
Ainda não há um prazo definido para que uma solução seja apresentada e colocada em prática.
Análise do solo da ciclovia
A prefeitura da Capital promete divulgar em breve o resultado de estudos de solo que devem ajudar a esclarecer os desmoronamentos e a definir o futuro da principal ciclovia da cidade. Enquanto esse trabalho é finalizado, a EPTC e Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) informaram que não se manifestariam sobre a pista à margem da Avenida Ipiranga.
Especialistas avaliam que o trabalho de dragagem realizado nos meses anteriores ao início dos desmoronamentos é uma causa provável — hipótese rejeitada pela empresa que realizou o serviço. Apesar das dúvidas sobre a razão da instabilidade no solo, a recuperação da estrutura é, em tese, considerada viável por especialistas.
Professor do IPH da UFRGS, Fernando Fan cogita uma explicação para os desabamentos:
— Os degraus ao longo do Dilúvio servem para dissipar a energia do escoamento. Assim, o leito do arroio não é escavado pela água, não se aprofunda. As margens sofrem menos alterações na sua base e ficam mais estáveis com o tempo. Um projeto que modificou esse equilíbrio dos sedimentos no leito do Dilúvio foi a recente dragagem — avalia Fan.
O especialista do IPH sustenta que seria importante conferir os projetos de retirada de material do fundo do arroio e as "verificações das estabilidades dos taludes que foram calculadas para proceder a dragagem". Outra medida adequada seria comparar as batimetrias (mapeamento do leito) anterior e posterior para confirmar se o trabalho foi calculado e executado de maneira adequada.
— É difícil ser 100% afirmativo no momento, mas, muito provavelmente, ocorreu uma dragagem em excesso que fez com que se perdesse um pouco da base, do esforço horizontal que segura o talude. Isso, aliado às chuvas fora do comum, justificaria esses pequenos rompimentos de talude — concorda o especialista em Patologia das Construções e professor da Unisinos Bernardo Tutikian.
Sócio da Brasmac Engenharia, responsável pelo trabalho de dragagem, Luis Fernando Schuler assegura que a retirada de material não afetou a sustentação dos taludes e diz que infiltrações de água da chuva a partir do topo seriam a explicação mais razoável. Tutikian avalia, porém, que nem mesmo pontos onde há rachaduras e fissuras na pista justificariam a desestabilização do solo:
Tem de recompor os taludes e ter uma obra de contenção contra os deslizamentos
BERNARDO TUTIKIAN
Especialista em patologia de construções
— Não vejo que rachaduras ou qualquer outro problema envolvendo a pista de rolagem da ciclovia sejam importantes. Poderíamos até fazer ciclovias permeáveis, como se faz em alguns lugares, para a água realmente penetrar no solo.
No momento, por solicitação da prefeitura, a Brasmac trabalha na recomposição de dois pontos de desmoronamento próximos da PUCRS.
— Realizamos a recomposição dos taludes, e agora estamos refazendo o ressalto (espécie de degrau que reduz a velocidade da água) — afirma Schuler.
A prefeitura não confirmou como ou quando será feita a recuperação dos demais pontos. Procurada por GZH, a diretoria da construtora Procon, que implantou os mais recentes trechos da ciclovia, não deu retorno até o fechamento desta reportagem.
Embora o Dmae também tenha se recusado a prestar informações agora, anteriormente o diretor-geral adjunto, Darcy Nunes dos Santos, havia afirmado a GZH que a estrutura de taludes do riacho está "doente". Apontou como causas desse adoecimento o "baixo nível de manutenção", a instalação de linhas de transmissão com postes de grande porte no topo da estrutura, o crescimento de árvores na margem e "diversas cheias que aconteceram no decorrer de 80 anos".
Para o especialista da Unisinos, a melhor solução seria recompor os taludes e recuperar o pavimento da ciclovia:
— Tecnicamente falando, são pequenos rompimentos que afetam pouco a ciclovia. Tem de recompor os taludes, ter uma obra de contenção contra esses pequenos deslizamentos e recompor a ciclovia. Não tem muita complexidade técnica — acredita Tutikian, lembrando que apenas a divulgação das análises técnicas poderá confirmar ou não qualquer avaliação preliminar.