A sanção do presidente Jair Bolsonaro ao pacote anticrime, com a manutenção do juiz de garantias, é mais um passo largo do seu afastamento em relação às bandeiras defendidas pelos “lavajatistas”, simbolizados pela figura do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro.
O juiz de garantias, inserido no texto da legislação pela Câmara, foi reação de parte da classe política ao próprio Moro, criticado por esses setores que consideram que o ex-juiz foi parcial em julgamentos da Operação Lava-Jato, quando ainda estava à frente da 13ª Vara Federal de Curitiba. Agora, como ministro, Moro fez movimentações políticas e recomendou a Bolsonaro o veto desse item da lei, mas foi ignorado. Tendo o combate à corrupção como um dos pilares do seu sucesso eleitoral, amplamente apoiado por quem defende a Lava-Jato, Bolsonaro colecionou situações de distanciamento no seu primeiro ano de governo.
— Não é a primeira vez que o presidente desautoriza o ministro. Já tivemos deploráveis retrocessos no combate à corrupção que contrariam a postura de Moro. A manutenção do juiz de garantias vem na esteira desses retrocessos. Na verdade, já faz um bom tempo que Bolsonaro está se afastando da Lava-Jato — diz o senador Alvaro Dias (Podemos-PR), um dos mais ferrenhos defensores do ex-juiz.
Dentre as situações em que Bolsonaro esvaziou Moro estão a retirada do Coaf da alçada do Ministério da Justiça. O órgão que identifica e compartilha movimentações financeiras atípicas, considerado pelo ministro como primordial para combater crimes de lavagem de dinheiro e organizações criminosas, foi deslocado para o Banco Central. Bolsonaro também interferiu na Polícia Federal do Rio para retirar do cargo o então superintendente Ricardo Saad. A Receita Federal sofreu interferências do Palácio do Planalto.
Alvaro Dias revela que o próprio Moro pediu aos senadores aliados que ajudassem a aprovar o pacote anticrime da forma como foi lapidado na Câmara para dar celeridade ao trâmite – um dos principais mentores das mudanças no texto foi o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que atuou pela retirada de itens como o excludente de ilicitude. Depois, disse o ministro aos parlamentares, o governo excluiria os itens indesejáveis por meio de vetos.
— De certa forma, havia o compromisso do governo. O ministro nos orientou a votar favorável e, depois, teríamos de dar sustentação legislativa a esses vetos. Surpreendentemente, o veto não ocorreu. Isso gera mal-estar no Senado. Não aprimoramos o que veio da Câmara, aprovamos tudo em um único dia, com a perspectiva de ocorrer o veto — conta Dias.
Após a sanção ter se tornado pública no Natal, Moro fez manifestação criticando a manutenção do juiz de garantias e dizendo que não se trata do “projeto dos sonhos”, mas relativizando ao dizer que o texto final “contém avanços”. Nas redes sociais, as reações foram mais radicais, sem o verniz diplomático do ministro. Com o apoio de conhecidos defensores da Lava-Jato, a hashtag #BolsonaroTraidor alcançou o primeiro lugar entre os temas mais comentados no Twitter.
A GaúchaZH, um investigador que atua na força-tarefa, sob a condição de anonimato, classificou a decisão de Bolsonaro como o mais duro golpe já sofrido pela operação.
— Todos os juízes, desembargadores e ministros que atuaram na fase da investigação não poderão mais participar do processo e do julgamento — comentou.
Medida beneficiaria Flavio Bolsonaro
Nos bastidores de Brasília, há a avaliação de que o presidente Jair Bolsonaro resolveu sancionar a criação do juiz de garantias em razão da situação do filho e senador Flavio Bolsonaro (ex-PSL-RJ), investigado por suspeita de corrupção no esquema conhecido como rachadinha à época em que ainda era deputado estadual no Rio. Com a nova medida, o juiz Flávio Itabaiana poderá ser impedido de julgar a eventual ação penal contra o senador. Na semana passada, após deferir 24 mandados de busca e apreensão para investigar Flávio, Itabaiana foi alvo de críticas da família Bolsonaro.
— Acho que ele (Bolsonaro) está perdido nesse enfoque da Justiça. Neste particular, a ação do Bolsonaro é muito contraditória em relação aquilo que foi uma das causas da sua vitória (combate à corrupção). Dá para suspeitar que tem a ver com o caso do Flavio, embora não se possa afirmar — diz o senador Lasier Martins (Podemos-RS).
O Podemos anunciou que ingressará no Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar derrubar a medida. Um dos argumentos é que houve invasão de competência. Líderes do partido entendem que mudanças na organização da estrutura jurídica nacional somente poderiam ocorrer a partir de projetos de autoria do próprio Judiciário.
Ao jornal Folha de S.Paulo, o ministro do STF Marco Aurélio Mello disse entender que a aplicação do juiz das garantias não deve retroagir para casos que já estão em andamento, o que não atingiria o caso de Flávio.
Em transmissão ao vivo nas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro defendeu a medida e disse que o saldo do pacote foi "excelente".
— Eu não fiz nenhum trato com ninguém sobre vetar o juiz de garantias. Nunca. É um absurdo falar "vocês aprovam aí que eu veto aqui". Esse é um contrassenso. Só uma pessoa que não tem caráter para falar uma coisa dessas. Eu não ajo dessa maneira. Não tenho esse tipo de comportamento. Se entrar em vigor, eu não sei se vai entrar em vigor. Se te prejudicar, é simples, não vota mais em mim. Afinal de contas, se eu fizer 99 coisas favoráveis a vocês e uma contra, vocês querem mudar. Então muda, paciência — declarou, ao ler comentários de pessoas.