Dia desses, madrugada. Insônia, cansaço. Sabe quando a exaustão da sua mente supera a imensa exaustão do seu corpo? Era um dia assim. Eu me encontrava desalojada dentro da minha própria casa, desencontrada do meu próprio ser. Eu era a fadiga de ser mãe-trabalhadora personificada. Foi o ápice! E esse ápice ia tão ao céu, que era um inferno. Pensamentos confusos, não se desenrolavam; queria dizer sem saber o quê; eu podia gritar, mas me faltava voz.
Em meio à minha íntima tempestade, pensava: eu deveria ser útil neste momento, fazer algo de produtivo enquanto o sono não vem. Sim, tenho uma péssima mania de utilidade. É desgastante! E, sim, eu realmente poderia produzir, mas naquela noite tão fria eu me entreguei. A vida é dura! Exige mais de nós do que às vezes damos conta. Passamos tanto tempo sendo funcionais que esquecemos que existe gente habitando nossa pele. Tem alma dentro de nós.
No meu caso, tem uma outra mulher dentro de mim. E essa mulher quer sair daqui, quer fugir de mim. Naquela madrugada, enquanto eu me desmanchava em dores e autopiedade, ela surtou. Brigou comigo, não me aturou. Disse que me enxergava complacente, boazinha demais. Jogou na minha cara que tenho sido, no mínimo, conveniente. Que faço cafuné no desconhecido, enquanto com a outra mão me rasgo as costas no chicote. Ela, que sabe se impostar, me exigiu posição. Fiquei ali, estática, sabendo que ela tinha razão. Essa mulher é a melhor parte de mim e ela quer partir. Eu não posso deixar. O que será de mim sem ela?
Serei somente realidade, livro de ponto? Serei café, almoço e jantar? Serei roupa na máquina, compra feita, piso lustrado? Serei banho tomado, cabelo desgrenhado e, no máximo, pele hidratada?
Não, ela não pode me deixar. Bato o pé, não aceito. Abro a porta do meu peito, entro sem pedir licença. Busco-a entre as melhores lembranças. Encontro-a. Sim, é ali que ela me habita. Sua intensidade só me trouxe glória. A mulher dentro de mim sabe viver. Quando a noite vem, faz loucas festas sob a lua alta e o céu limpo. Adoro quando toca Aretha Franklin e ela não se controla, sai pela sala a bailar. Ela é meu gingado e meu quadril em chamas.
Foi a mulher dentro de mim quem me ensinou a amar minhas irmãs de outros ventres. As mulheres que, como eu, andam no mundo a vagar, a lutar, a parir gente, a criar. Me deu aula de como valorizar aquelas que rondam o meu mundo: a atual do meu ex e a ex do meu atual, também.
Quero aprender tudo do que ela tem pra ensinar. Preciso do exercício de ver o mundo por meio de sua íris, até que seja nosso, o seu olhar. Até que o muro de moralidade que nos separa, venha a baixo e numa fusão de praticidade e instinto sejamos uma só. Moramos sob a mesma pele, mas sou tão cedida às convenções e ela é tão dona de si. Sou sociável, adestrada, ela é bicho solto. Nos completamos, nos fortalecemos. Jamais a deixarei partir.