Luíz XIV, o poderoso Rei Sol, governou a França com mãos de ferro por mais de setenta anos. Foi um déspota, mas também um grande mecenas para as artes. Considerava-se ungido por Deus, um ser divino que pairava acima dos mortais. O cineasta Albert Serra dirigiu um belo e sombrio filme debruçando-se sobre os últimos dias de sua vida. O que se vê é um homem em seus estertores, mas ainda arrogante, forçosamente fragilizado por uma gangrena na perna, que o conduzirá em breve à morte. Na cena final, de um realismo difícil de testemunhar, os médicos abrem sua barriga e analisam as vísceras. Pegam entre as mãos o baço, o intestino... quiçá em busca de algum indício que o distinga do comum dos mortais. Mas, nada. Afinal, o monarca se revela igual a todos, com o corpo já dando indícios de uma rápida putrefação. O homem que durante décadas comandou guerras sangrentas para expandir os seus domínios e que não conhecia limites para o seu poder, torna-se agora refém da carne e fica exposto em sua perecível condição. Como eu e você. Como todos. De nada adiantou elevar-se com prepotência acima dos outros. O tempo se encarrega de tudo nivelar, de tudo lançar para o esquecimento. O mais é pompa e circunstância. Um breve espasmo, um sopro, como nos ensinou o bardo inglês.
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Gosto de acompanhar, em livros ou no cinema, o arco que compõe a existência dos grandes personagens que povoam a história. Há sempre a grandeza e o declínio. A luta e a deposição da espada. Tudo se equilibra sobre o efêmero. Ter ciência disso é relativizar a nossa importância neste pequeno planeta perdido em meio a tantas galáxias. Mas há nisso, paradoxalmente, um maravilhamento. Como esse frágil organismo que hospeda a consciência pode ser capaz de atos tão sublimes e também tão violentos? A filosofia, ao longo dos séculos, suscitou mais perguntas do que respostas. Continuamos ancorados no mistério, sem bússola, a não ser a da fé, para os que dela dispõem. A possibilidade de nos direcionarmos para o bem, segundo as nossas inclinações e condicionamentos, definirá uma pequena vitória sobre o que se esfuma. Temos a nossa disposição a capacidade de reconhecer o que é ou não irrelevante, nascendo reis ou seres anônimos. É a atitude mental que nos levará por este ou aquele caminho.
Podemos escolher. É claro que se eu estou cercado por uma corte que se inclina à minha passagem, a chance de me considerar magnífico se multiplicará. Lembremos, porém, que ali impera a mentira, o desejo de adulação. A mera subserviência.
Na escala do humano há que se considerar não a posição que se ocupa, mas como ela é ocupada. E transformar isso em mérito ou enganosa superioridade. Só depois disso saberemos quem foi rei e quem foi escravo.
Opinião
Gilmar Marcílio: pompa e circunstância
"No arco que compõe a vida dos grandes personagens, há sempre a grandeza e o declínio."
Gilmar Marcílio
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