Católicos, espíritas, evangélicos, umbandistas. Não importa qual é o texto que invoca a salvação, todos sonham habitar o céu. São poucos os discurso dizendo que a virtude ou a bondade sejam um fim em si mesmas. Preciso recorrer à filosofia, especialmente a Platão, para encontrar uma palavra que se afaste da necessidade da recompensa. Do toma lá, dá cá. Eu me contenho agora, de olho no prêmio futuro. Fabrico um pensamento com alto valor moral para polir a minha imagem junto ao criador.
Numa espécie de ingenuidade tardia, invoco a beleza de se acreditar que no humano posso encontrar um pouco mais do que a troca interesseira, a garantia lá adiante. E busco por seres que acreditam no valor da solidariedade, da compaixão. Que se estimulam a ver no outro um espelho deles, recolhendo dentro de si um resto que seja de puro amor ao próximo. Que o paraíso seja aqui, sem querer resgatar a longo prazo os investimentos feitos agora. E a morte apenas uma espécie de curto circuito do corpo. Depois? Cada um aposta suas fichas onde quiser. Ou as deixe repousando sobre a mesa, surradas, esgotadas pelo uso nesta vida que conhece o seu fim.
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Talvez tivéssemos desaparecido, como raça, se esse medo atávico de uma punição no além não refreasse os nossos piores impulsos. Esse valor coercitivo da religião é inegável. É preciso temer para não desembainhar a faca, pois apreciamos o gosto do sangue. Desenvolver a certeza de que o pecado existe, mesmo sabendo que ele varia de época e de credo. Ou seja, não há a verdade, mas uma série quase infinita de verdades que ocupam o palco e depois desaparecem. Somos isso. Precisamos do calafrio na espinha para frear o desejo de amealhar desenfreadamente, de olhar para o outro como um potencial inimigo que quer usurpar o espaço que ocupamos.
Santo é todo aquele que se esgota na generosidade, que se priva para acolher quem está ao seu lado. Que vê poesia enquanto tantos recolhem apenas a sujeira das almas deformadas. Encher a boca e exclamar "eu acredito em Deus!" não nos torna merecedores, apenas criaturas mirando algum ganho. Crédulos ou ateus precisam ser respeitados por seus atos, pois isso conta bem mais do que um discurso esvaziado de sentido. É o que se vê na materialidade da existência. É o que pesa na balança. Não falemos num hipotético juízo final, pois ele acontece todo dia, aqui onde se desenvolvem as cenas cotidianas.
Sejamos justos pelo gosto de sê-lo. Viver é belo e doce porque termina na correnteza limitada dos dias. Miremos nos poetas: seus olhos tecem o efêmero. O que fica? Talvez nada ou talvez, como disse Jesus, uma casa em que há muitas moradas.