Gosto daqui. Não sei se porque nasci, cresci e vivo aqui, mas gosto daqui. Gostar nem sempre precisa razão. Gostar nunca foi verbo. Sinto gosto pelo sol, pelas ruas, pelo frio, pelo urbano, pelo interior. Gosto das janelas, das casas, de observar os prédios. Imagino a vida dos outros. Gostam também daqui? Gosto das pessoas daqui, das que são daqui, das que não são daqui, das que vieram pra cá e fizeram daqui um lugar.
Gosto porque nunca me foi imposto gostar. Gostar não deveria ser obrigação. Nem necessidade. Gosto de outros lugares também, mas o lá nunca é o aqui. E fazer daqui um lá não é fácil para quem veio de lá e agora está aqui. Meus avós tiveram de sair de lá. Vieram para cá. Tiveram de aprender a gostar daqui. Obrigação, necessidade? Acho que se adaptaram. Adaptar-se não é gostar. Nunca falamos sobre isso, não assim abertamente. Complicado isso de perguntar sobre o íntimo do gostar. Difícil responder não, se só se tem aqui. Se se foi obrigado a vir para cá, mais ainda. Depois de estar aqui, como fazer daqui um lá? Somos um baú de memórias, recuperamos um cheiro, uma flor, uma comida, uma cortina. Reavivamos a língua, o idioma, o sotaque.
Demarcamos o aqui com as identificações que vieram conosco de lá. O idioma é um aqui que nunca morre. E aqui é cheio de sotaques. As gentes de outros lás que agora vivem aqui, falam como se fosse lá para mostrar que não são daqui. Eu gosto disso. As cidades são cheias de gentes que vem de lá. São tantos lás. Lá longe, lá de outro lugar, outra cidade, outro país. O problema é quando chegam aqui porque perderam o lá.
Dias atrás encontrei com vários destes. Gente igual a nossa gente, mas de outro lugar. Romper a barreira do idioma é o primeiro passo para fazer daqui um lá. Quem sabe conseguir transformar um lá em lar. Fui falar sobre saúde mental e é quase impossível falar disso quando não se tem nem o básico. Fui para falar e não falei nada. Escutei falarem das dificuldades de viver aqui, de terem deixado os amigos para trás, de não conseguirem se integrar com as pessoas daqui, do idioma que atrapalha. Então falei em espanhol. Falar a língua do outro é um jeito de abraçar quem vem de fora. Me contaram dos livros e escritores de seus países, recitaram poesia, falaram da saudade da comida que só tem lá, da dor de estar aqui quando queriam estar lá. E de repente éramos todos muito parecidos, sem lá ou aqui.
Respeito nossa cidade pelo serviço realizado lá na ponta, em que o ser humano, seja de lá ou daqui, é praticamente invisível, mas a política está toda errada. E aqui a crítica é à política em sua essência. Os investimentos precisam ser também da ordem do simbólico. Uma sociedade de pessoas boas se faz com pessoas boas que estão no poder, que legislam e executam pensando de modo integral no sujeito. Senão é discurso retórico de quem só pensa em si e usa a política de modo egoísta. A vida em sociedade é feita da partilha do sensível, se isso não é compreendido, beiramos o descaso e a violência. Daí o aqui pode ser ainda pior que o lá.