Quando desci do carro caí dentro do castanho dos olhos daquele sujeito que nunca vi na vida e que se o visse hoje não reconheceria. Castanho escuro como a parte de trás da viola de meu pai. Ele me olhou enquanto recolhia do chão um saco improvisado de dormir e uns papelões. A essa hora por aqui, ele disse, é o encontro com a morte. Ele tinha razão. Toda razão. Ele um morador de rua e eu com a sensação de ser despejada pela realidade. Eu sabia de antes, ainda. Soube às 5h05min da manhã quando o telefone tocou e era do hospital. Não tinha dormido bem. Um misto de angústia e calor. Na verdade, pensando bem, fazia uma semana que sabia disso. Era domingo, fim de verão, quente. Estava perambulando pela casa, acho. De repente ouvi minha mãe gritar. Larguei o que estava fazendo e que por mais que tente me lembrar o que era, esqueci. Quando cheguei ele já estava deitado no sofá e sorria. Sorria como quando eu dizia, pai, toca um pouco pra mim? Atrás da porta do quarto ficava pendurada a viola. Uma viola cujas cores inundavam meu pensar durante as tardes. A parte da frente era vermelha como o pôr do sol com umas rajadas numa escala de cores complementares. Tinha dez cordas, ele me explicava. Então a gente sentava do lado de fora da casa. Ele numa cadeira e eu no chão. Ele tirava da viola uma música e eu fechava os olhos. Acompanhava o som observando de ouvido como as mãos se movimentavam segurando e soltando as cordas. Quando ele terminava eu dizia, toca mais uma. Ele sorria.
Saudades
Opinião
A viola de meu pai
A música era um jeito de falar entre nós
Adriana Antunes
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