Nessa época de outono, quem tem pomar em casa ou por perto, certamente tem um pé de caqui. Eu como caqui desde pequena e aqui em casa até os cachorros comem. O caqui guarda em si o sol de um ano inteiro, deve ser por isso a cor laranja-rubro que ele apresenta quando amadurece. Claro, essa é uma explicação poética, isso porque gosto mais da poesia do que da biologia. Afinal, nem tudo precisa de uma explicação racional. Este ano decidimos fazer hoshigaki, um doce japonês que consiste em deixar o caqui secar ao sol, pendurado num varal ao longo de um mês. Ao final deste tempo a nossa fruta que era laranja torna-se branca, por causa da frutose que sai de dentro e vem para fora, numa alusão a chegada do inverno, das geadas e, talvez, da neve. A minha parte nesta feitura coube em apanhar os caquis do pé e torcer para eles ficarem prontos logo. O perfume é algo incrível, difícil de descrever, talvez uma mistura de orvalho, sol e açúcar de baunilha.
Comer hoshigaki é comer o tempo, no melhor sentido, comer a espera de um mês. Toda vez que comemos frutas, verduras e orgânicos em geral, penso que estamos nos alimentando das estações, das chuvas, das manhãs de sol, dos dias no calendário, do cuidado do agricultor e da generosidade da natureza.
O hoshigaki é um caqui seco, parecido com a uva passa, mas sem a sua inocência, ou como as tâmaras, mas sem a sua elegância. Ele é um doce que fala da lentidão, do caminho da transformação, do cuidado e da delicadeza. Em tempos de quarentena fazer hoshigaki é exercitar nossa capacidade de reflexão.
Fazer caqui seco é quase uma arte, a arte que a natureza tem de esconder a beleza para que possamos descobri-la, e eis aí, talvez, o segredo de poder rir de si mesmo e dar-se conta de que realmente sabemos muito pouco da vida. E quem diria que se poderia dizer de modo tão poético algo sobre o caqui? Enquanto esperamos pela fruta entregar-se pronta, sonhemos com o efêmero e demoremo-nos um pouco mais da formosa tolice das coisas, eis uma frase perfeita escrita pelo Kakuzo Okakura, que nos fala da importância da observação e apreciação da beleza viva das coisas corriqueiras.
Estar em isolamento é também uma oportunidade de redescobrir-se. A beleza só existe se estivermos presentes nela, mesmo que ela nos chegue com a morte, a dor, o medo, a angústia, a sensação de vazio ou de tédio. Revelamos-nos a partir das pequenas atitudes. Comer hoshigaki é comer um pedaço da infância que não foi vivida ainda, como se nos fosse dada uma nova chance de ressignificar momentos. Não se esqueça de beber uma xícara de chá junto e ser grato por ainda estar aqui.
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