Guardo uma certa compaixão silenciosa para com as pessoas que sonham com o possível, aqueles que buscam a ética, o legítimo, o próximo. Os que sonham o grandioso, o impossível, o grande feito, a grande revolução ou são malucos, completamente fora do contexto social ou são felizes, uma vez que a realidade não os toca. Quem sonha com o possível, com aquilo que está perto e que demanda de um pouco mais de trabalho, de leitura, de consciência, de tempo, de compreensão, esses têm a real possibilidade da desilusão. Eu não me importo com as viagens para o estrangeiro que fulano ou sicrana fez, se saiu na coluna social, se o espumante na festa tinha uma ou duas fermentações, mas me dói saber que o tio Berto, na altura de seus 70 anos ainda acorda todo dia às 7 horas da manhã para consertar geladeiras e máquina de lavar roupas; que a dona Nena trabalhou uma vida toda como empregada doméstica e que além de não ter carteira assinada , envelheceu e tem o corpo todo cheio de problemas por conta do serviço pesado; que o Gringo, um baita pedreiro, teve de parar de trabalhar por que uma doença lhe levou embora a chance de terminar de construir a própria casa.
Me dói saber que a mãe da Carol enfrenta outra vez um câncer, que o pai do Jefe também, que o pai da Van morreu de um, que o querido do Nery teve de organizar seus filmes para locação disputando espaço com produtos de limpeza, uma máquina de fazer sorvete italiano, chapéus e bolsas, além de ser motorista de uber. Sonhar com o possível é ver na vida uma chance de solução. Uma chance de o tio Berto quem sabe um dia não precisar mais trabalhar como trabalha, que a Nena veja cessar suas dores, que o Gringo melhore e volte a terminar sua casa, que a mãe da Carol e o pai do Jefe se curem, que a dor da perda da Van um dia diminua, que o Nery possa voltar a ter uma locadora de filmes cults. Poxa, tantos com tantas lutas e era preciso só mais um pouco para se poder sorrir de um jeito mais tranquilo.
Quem sonha com o possível está submisso às contingências da vida. Nunca foi crime sonhar com a possibilidade da vida e de repente ela se torna insuportável. Há uma multidão alheia de pessoas sonhando com o possível. Sonhando com a medicação na farmácia, com um médico que seja mais humano e acolha a dor de quem sonha com a cura de alguém querido, com a chance de fazer uma casa do seu jeito depois de ter feito tantas para os outros, com a possibilidade de envelhecer com dignidade, com a cultura tendo seu espaço preservado e legitimado. Ainda não sei se sonho com o possível ou o impossível, mas me dói saber que têm pessoas que nunca vão conseguir.