Uma área de banhado e aterro, cortada por arroios, foi transformada em lixão a céu aberto na zona norte de Porto Alegre. No local, no bairro Sarandi, caçambas despejam caliça e madeira proveniente de residências destruídas pela enchente. O descarte ocorre pela manhã, à tarde e à noite. Parte da caliça forma diques que bloqueiam o fluxo de riachos, afluentes do Rio Gravataí. Mas não apenas isso.
A partir da dica de um leitor, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) flagrou alguns caminhões descartando sacos que aparentavam conter lixo orgânico, devorado imediatamente por porcos e aves. Garças, urubus e maçaricos voam perigosamente perto dos aviões que decolam ou pousam do aeroporto Salgado Filho, situado próximo dali.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) abriu um inquérito civil para avaliar a situação da área. Alertada pelo GDI, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade de Porto Alegre (Smamus) informa que realizou, nesta segunda-feira (28), ação fiscal no lixão e emitiu Auto de Infração 1026189, por depósito irregular de resíduos da construção civil. Passa a contar nesta data o prazo legal de 30 dias para apresentação da defesa. O valor da multa pode variar de R$ 5 mil a R$ 50 milhões.
O biólogo e arquiteto Francisco Milanez, doutor em Educação em Ciências e diretor científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), esteve no lixão, a convite da reportagem. Ele descreve a cena como entristecedora, de indivíduos submetidos a uma situação degradante.
— Não tenho dúvida de que ali se superpõe um compêndio de crimes ambientais — afirma Milanez.
Ocupação de banhados, importantes áreas de produção de oxigênio, com lixo. Descarte de entulhos de obra, o que já é ruim. Mas há também lixo doméstico, com porcos e aves aos montes comendo ali. Pior: detritos queimando, por combustão natural oriunda de gases do lixo ou provocado por ação humana. E tudo isso traz risco para o tráfego de aeronaves, pois urubus são atraídos pelo lixo a dezenas de quilômetros
FRANCISCO MILANEZ
Diretor científico da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural
Fumaça e aves a 600 metros do Salgado Filho
A lei federal 12.725, de 2012, sobre o controle da fauna nas imediações de aeródromos, define como Área de Segurança Aeroportuária (ASA) uma distância de 20 quilômetros a partir do centro geométrico da pista do aeródromo. O lixão fotografado pelo GDI fica próximo à confluência da Rua Dona Alzira com a Avenida Severo Dullius — a 600 metros das cabeceiras de pistas do aeroporto Salgado Filho.
A lei proibe que, na área delimitada, haja "quaisquer outras atividades que sirvam de foco ou concorram para a atração relevante de fauna, no interior da ASA, comprometendo a segurança operacional da aviação".
Especialista em investigação de acidentes aéreos e riscos para a aviação, o engenheiro Gerardo Portela examinou as fotos do local e conclui: as rigorosas normas técnicas previstas para o entorno de aeroportos não foram cumpridas ali.
— Não é assim que se faz um depósito de lixo, está claro. As imagens mostram que falta fiscalização. E o mais grave: próximo a um aeródromo. Soma exposição a riscos. Aviação é muito sensível a aves, colisão com fauna é um dos problemas maiores que existem. É uma soma de falhas visível aí, pode ser questão de tempo para um acidente acontecer.
Questão de saúde pública
Paulo Müller, conselheiro da Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí, duvida que algo ali seja legalizado, pela constatação de crimes contra a saúde pública (porcos que comem o lixo e depois podem ser destinados a consumo humano). Ele ressalta que a presença desses animais significa que o lugar, além de material inerte (caliça), também serve para descarga de resíduos orgânicos.
Lixo orgânico tem que ir para aterro sanitário de resíduos sólidos urbanos (licenciado) e lixo da construção civil para aterros de resíduos inertes. Ocorre ali um crime contra o meio ambiente.
PAULO MÜLLER
Conselheiro da Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí

Inquérito civil
A promotora de Justiça do Meio Ambiente em Porto Alegre, Annelise Steigleder, explica que o inquérito civil envolvendo a área foi aberto após uma queixa sobre existência depósito de lixo irregular.
Ela questionou ao Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) quais são os tipos de resíduos largados na área, a quem ela pertence e se ocorre poluição de recursos hídricos ali. Ainda não obteve resposta. Determinou ainda que servidores do próprio Ministério Público façam uma vistoria. Será verificada a possibilidade de infrações à Lei 9605/98, como poluição e aterramento de área de proteção ambiental.
O Comando Ambiental da Brigada Militar recebeu cópia das imagens captadas pela reportagem e ficou de vistoriar o local.
O Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) informou que a área do lixão é irregular e que não existe licença para depositar detritos lá.
Leia a íntegra da nota do DMLU
"A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, por meio do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) informa que a área apontada pela reportagem não é próprio do órgão. Em vistoria ao local realizada na quinta-feira, 24, em conjunto com a FEPAM, constatou-se que os animais vistos na área do aeroporto não são oriundos do Bota-espera do DMLU, localizado nas proximidades da avenida Severo Dullius (rua Sérgio Jungblut Dieterich, 1201).
Há uma área particicular, ao lado do Bota-espera, na rua Dona Alzira, 2011, bairro Sarandi, que é alvo de ação fiscal desde 2023.
Devido ao acúmulo irregular de resíduos, em vistoria ao local realizada na tarde desta segunda-feira, 28, foi emitido um auto de infração ao proprietário do imóvel, em descumprimento ao Código Municipal de Limpeza Urbana, Lei 728/14, pelo Serviço de Fiscalização. O DMLU também flagrou no endereço uma situação de descarte irregular de resíduos, e o proprietário do veículo responsável pela ilegalidade também foi autuado.
Técnicos da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) também estiveram no local e foi emitido o Auto de Infração por depósito irregular de resíduos da construção civil. Passa a contar nesta data o prazo legal de 30 dias para apresentação da defesa por parte do autuado.
Para abertura de ação fiscal em terrenos baldios, orientamos o registro de denúncia, que pode ser anônima, no sistema 156. Por meio do protocolo fornecido no atendimento, é possível acompanhar o andamento da solicitação."