
Brasileiros recebem uma média de 23 mil ligações telefônicas automatizadas por segundo, as chamadas "robocalls".
Os dados, com base nos meses de janeiro e fevereiro, fornecidos pela Agência Nacional de Telecomunicações, revelam a intensidade com que os consumidores são importunados por esse tipo de chamado todos os dias.
No período, foram 24 bilhões de ligações desse tipo, um aumento de 12% em relação ao mesmo bimestre de 2024.
Uma reportagem do Grupo de Investigação da RBS (GDI) revelou, neste domingo (27), no Fantástico, o que está por trás desses chamados e como as empresas de telemarketing conseguem falsificar números para evitar rastreamento e induzir os cidadãos a atenderem as ligações.
Como funciona o esquema?
Na maioria das vezes, ao realizar os disparos em massa, as empresas buscam uma "prova de vida" de que aquele número está ativo.
O esquema envolve três níveis de prestadores de serviços. O primeiro é responsável por fornecer milhões de dados cadastrais usados pelas empresas no contato com os consumidores. São listas segmentadas por idade, profissão e até mesmo faixa de renda, muitas vezes vazadas de bancos de dados oficiais.
Ao negociar com uma dessas empresas, a reportagem obteve uma amostra com 60 cadastros.
— A gente trabalha a partir de mil registros. Mil contatos saem R$ 150, é acessível, entendeu? — disse o vendedor.
Um dos nomes que aparece na lista é do psicólogo de Guaíba, Matheus Arend Neves.
— Eu me sinto bastante invadido. A questão de privacidade, principalmente. A gente não tem essa segurança de onde que tá passando os dados. Quem é que tem esse acesso? Quem é que tem essa informação? — questiona o psicólogo.
Com as listas, as empresas contratam ferramentas de disparo em massa de ligações. O sistema é conhecido como Unidade de Resposta Automática (URA) Reversa. Normalmente, esses mecanismos usam uma forma de ligação telefônica via internet, conhecida como Voip, fornecida à parte ou vendida em pacotes incorporados à própria ferramenta.
Esse sistema automatizado, também chamado de "metralhadora", dispara ligações em massa para milhares e até milhões de telefones. O objetivo é realizar uma espécie de "prova de vida", ou seja, identificar se o número está ativo, explicou o ex-funcionário de um call-center do Rio Grande do Sul, que pediu para não ser identificado.
— Quando a gente recebe essa base telefônica, tem que testar toda essa base para saber se os clientes que estão ali são ativos ou não, se os telefones que a gente recebeu dessa empresa que quer cobrar dívida são ativos ou não e para isso a gente usa um sistema de ligações curtas robotizadas — diz o ex-funcionário de call-center.
O GDI negociou com uma empresa que vende a ferramenta. A funcionária disse que o sistema permite "maquiar" o identificador de chamada, e até programar o código de DDD que vai aparecer no visor do consumidor.
Assim, por exemplo, uma empresa baseada em São Paulo pode disparar uma ligação automática para o Rio Grande do Sul e fazer aparecer, no visor de quem recebe a chamada, o código 51, referente à Capital, por exemplo.
— É mais provável da pessoa atender uma ligação ali, da região dela, do que lá de São Paulo. Eu não estou em São Paulo. A chance da pessoa atender, às vezes, é menor. Mas aí o intuito é isso, é aparecer binando com o DDD da região, mesmo que você não esteja — ressalta a vendedora da empresa.
O advogado especialista em crimes cibernéticos, José Milagre, adverte:
— Isso pode caracterizar fraude eletrônica com pena de até oito anos de reclusão — explica Milagre.
Mas não é só o DDD que pode ser alterado. Os sistemas automatizados criam números aleatórios, que não existem, como revelou o funcionário de uma empresa que vende planos de telefonia para operar sistemas de robocall.
Se bloquear os números, resolve?
— Não. Não vai adiantar nada. Porque é centenas de milhares de números. Se eu ligar pra você cem vezes, vai ser cem números diferentes — respondeu o vendedor.
É por isso que a empresária Rosaura Dutra, de Santo Antônio da Patrulha, tenta bloquear as mais de 40 ligações automatizadas que recebe todos os dias, mas não consegue.
As ligações não param, não faz diferença (bloquear)
ROSAURA DUTRA
Empresária
Rosaura tem o número de celular pessoal cadastrado na ferramenta "Não me perturbe", da Anatel, mas nem isso resolve, uma vez que os números sequer existem, na prática. Portanto, não podem ser rastreados.
Assim como a empresária, muitos consumidores deixam de atender telefonemas de contatos não salvos na agenda do celular, imaginando se tratar de "ligações spam". Com isso, podem perder chamados importantes, como retornando uma seleção de emprego ou até a resposta para a tão esperada cirurgia para receber um órgão.
Na Santa Casa de Porto Alegre, houve casos de pacientes que perderam o lugar na fila de transplantes em função de não atender ligações.
— Já tivemos alguns pacientes que perderam o transplante porque não atenderam o telefone. Eles não atendem, porque não conhecem o número e imaginam que seja o call-center — diz a enfermeira Jaqueline Bica.
Em Santana do Livramento, a funcionária pública Gabriela Scholl não atendeu a uma ligação que anunciava o agendamento do exame que esperava havia dois anos.
— Eu já poderia ter feito o exame, poderia estar em tratamento — lamenta.
Ligações indesejadas na prática
Para demonstrar como tudo funciona, o GDI negociou um teste com uma empresa que oferece a ferramenta para os disparos em massa. Para isso, preparou um cadastro com quinze números de celular, enviados à empresa em uma planilha excel.
Depois, distribuiu os respectivos aparelhos na Redação da RBS TV. Entre os jornalistas, estava ainda o diretor-executivo do Procon de Porto Alegre, Wambert di Lourenzo, cujo número também foi incluído na planilha. A ideia era que ele vivesse na pele a importunação.
Por vídeoconferência, foram acertads os detalhes do disparo em massa. Uma vez carregados os dados, em seguida os telefones começaram a tocar, em sequência. As ligações chamavam, e uma vez atendidas, desligavam. A experiência gerou um relatório com o horário, e os segundos em que cada uma durou. No documento, apareceu o celular do gestor do órgão de defesa do consumidor da prefeitura da Capital.
Ao receber ligação automatizada, diretor do Procon anunciou abertura de investigação.
— Como Procon, nós vamos abrir investigação, para tentar chegar aos fornecedores que usam esse serviço. E vamos oficiar também a polícia para que possa abrir a investigação — declarou Wambert.
Uso para golpes
Além de importunar os brasileiros, as "ligações spam" também podem esconder um golpe ainda mais grave: o da falsa central telefônica. Assim como podem gerar números fictícios aleatórios, os sistemas permitem programar a ferramenta para simular o número verdadeiro do call-center do banco.
Assim, quem recebe o chamado, acredita mesmo ser um contato da instituição bancária. Mediante à compra de créditos, o GDI assinou o acesso a um site que usa inteligência artificial para criar roteiros de ligações e até gravar mensagens de áudio disparadas aos consumidores.
Uma vez atendida pela vítima, a ligação gera a gravação de que houve uma suposta compra no cartão do consumidor. Ao não reconhecer a transação, o chamado é desviado para os golpistas, que fingem ser atendentes do falso call-center.
A Agência Nacional de Telecomunicações diz que trabalha para combater as ligações abusivas
— Desde junho de 2022, que foi uma primeira cautelar mais enérgica da Anatel, até março deste ano, nós já reduzimos 222 bilhões de chamadas circulando nas redes de telecomunicações — garante Cristiana Camarate, superintendente de Relações com Consumidores da Anatel
A superintendente informou que já está em fase de testes uma ferramenta que busca autenticar as ligações.
— Chama-se "Origem Verificada". Quando o seu celular tocar, vai aparecer a logo da empresa que está te ligando, o nome dela e o motivo pelo qual ela está te ligando. Então, se o consumidor quiser atender naquele momento, ele pode atender com tranquilidade, não será uma fraude —explica Cristiana.
Nota de Posicionamento da ABT
A Associação Brasileira de Telesserviços (ABT) esclarece que suas associadas trabalham com informações de contatos fornecidas pelos seus clientes, não fazendo a "compra de listas de dados", assim como atuam fortemente para evitar "ligações mudas" ou insistentes, garantindo a identificação de quem está ligando.
E para combater práticas abusivas de segmentos do mercado e fraudes de criminosos que se passam por call centers verdadeiros, a ABT tem apoiado ações e regulamentações da Anatel, incluindo a implementação de tecnologia de autenticação de chamadas adotada com sucesso nos EUA e Canadá e outras medidas que vedam a não identificação de chamadas e restringem ligações mudas. Ao mesmo tempo, na autorregulação do setor já constam regras que vedam tais práticas.
Por fim, a Associação e suas associadas firmam o compromisso de seguir trabalhando em prol do cumprimento de todas as regras da legislação e da autorregulação citadas, a fim de proteger os consumidores, combatendo abusos e resgatando a confiança no uso do telefone.