Adoraria que o ativismo feminista de hoje tivesse me alcançado lá na juventude, quando eu sabia tão pouco. Ainda bem que Simone de Beauvoir e Marina Colasanti vieram em meu socorro – não havia redes sociais, mas havia livros. Graças a elas e ao alcance atual da tecnologia, agora estamos todas unidas no combate à desigualdade de gênero.
Mas como fica o jogo erótico? Óbvio que é preciso educar mulheres e homens para a regra fundamental: Não é Não. É a condição primeira das relações saudáveis. Mas aí lembro de Catherine Deneuve e a polêmica carta que intelectuais e artistas francesas assinaram em 2018, defendendo a liberdade de importunar. Foram muito atacadas. Não por mim. Entendi que elas também combatiam abusos, apenas temiam desestimular ousadias que, para algumas pessoas, é um aditivo sexual.
É difícil trazer este tema à luz. Ele costuma ser discutido e combinado apenas entre quatro paredes. Só sai da alcova em forma de representação artística, como no caso do filme Babygirl, que não é nenhuma obra-prima, mas está dando assunto.
É a história de uma poderosa CEO, casada, com filhos, que inicia um caso quente com um estagiário muitos anos mais jovem, e se submete às humilhações que ele determina.
Uma coisa leva à outra e reli o conto O Jogo da Carona, de Milan Kundera. Um casal de namorados, durante uma viagem de carro, encosta em um posto para abastecer. A garota sai do carro em busca de um banheiro e, quando retorna, pede carona ao seu parceiro, fingindo ser uma desconhecida. Ele entra no jogo e a viagem se reconfigura. Os dois agem como jamais tivessem se visto, e à medida que a conversa avança, surgem estranhezas incômodas. Quem é você, afinal?
Jogos entre adultos servem para escapar do “eu” corriqueiro. A gente costuma se apresentar para a sociedade como um produto biográfico específico, mas dentro de nós há todas as possibilidades de existência: somos não apenas cordatos, monogâmicos, amorosos, mas também agressivos, libidinosos, perversos, tudo o que se reprime.
Encarcerados pela religião, pela cultura ou pela moral, nossos outros “eus” só afloram quando estamos numa situação limite ou a serviço da fantasia, que nos dá o álibi. Por isso a arte é tão necessária nesse mundo cheio de regras. Ela não tem pudores. Atravessa paredes e desmonta certezas. Tudo é aceito no cinema, na literatura.
Coexistem, ao mesmo tempo, a timidez e o atrevimento, a bondade e a tirania. O título do livro de contos de Kundera é Risíveis Amores, mas em tcheco, idioma natural do autor, chama-se Amores Mistos, que me parece mais condizente com o que somos em essência: seres atormentados que se esforçam diariamente para viver com juízo. Até que a subversão nos chame para brincar.