
Parecia tão romântico: os filhos não são nossos filhos, e sim filhos da vida, flechas que voam enquanto o arco se mantém estável e aquela coisa toda. Éramos projetores de almas que, depois de acarinhadas e protegidas entre quatro paredes, iriam transmitir lá fora o seu aprendizado e seu potencial afetivo.
Somos todos frutos do meio, claro, mas ninguém discutia o poder do legado familiar. Se em nosso destino estava ganhar o Nobel ou cometer um crime, era aos pais que deveríamos agradecer ou culpar. A ligação de causa e efeito era imediata: filhos largados, desgraceira à vista. Filhos amados, futuro a salvo.
Que angústia quando não saía como o combinado. Se toda a prole foi amada do mesmo jeito, por que a caçula se formou em Medicina com louvor enquanto seu irmão se droga e fica três dias sem aparecer em casa? Por quê? Por quê?
É a pergunta que ressoa durante os quatro dilacerantes episódios da série Adolescência, da Netflix. Espera-se uma explicação convincente para os fatos, e a resposta é aflitivamente inexata.
Ora, porque cada ser humano tem sua complexidade, porque não há quem seja apto o suficiente para preencher a carência do outro, porque estamos submetidos a julgamentos diários e injustos, porque já não existem paredes que nos protejam do olhar indiscreto e insaciável da sociedade, porque buscamos validação constante e nos atacar é a diversão de estranhos, porque a facilidade de acesso à intimidade alheia induz a uma comparação que nos consome, porque nunca seremos tão belos, desejáveis, ricos, inteligentes e merecedores daquilo que os outros aparentam ter e ser. E mais cinco dezenas de porquês.
Outro dia me perguntaram, ao final de um talk show, o que ainda me fazia acreditar na humanidade. Travei. Não queria terminar um encontro agradável ofertando a palavra “nada” para a plateia. Busquei um subterfúgio, acabei falando em filhos: eles costumam ser a nossa versão melhorada (ao menos, é para isso que nos empenhamos em sua educação). No mínimo, eles estarão em seu auge intelectual quando estivermos apatetados, e saberão lidar melhor com os desafios da vida, ao contrário de seus pais idosos, esgotados de tanto tentar se adaptar às mudanças.
Só que a mudança, agora, é violenta para todos. Os adolescentes hoje consomem irrealidade, boatos, maldades. Estão inseguros em seus quartos e têm dificuldade de identificar emoções genuínas. O diálogo na mesa de jantar não existe mais, a família unida no sofá também não. Há uma tela entre nós.
Um outro tipo de Deus, nada misericordioso. Só mesmo o amor para amenizar o estrago – sobrou para ele, de novo. Amor de olhos abertos, amor com beijo, abraço e escuta. E seja o que esse outro Deus quiser.