Por Gabriela Kremer Motta
Pesquisadora, crítica e curadora em artes visuais. Professora adjunta no Instituto de Artes da UFRGS
Há mais de uma década, a região de Osório, no Litoral Norte, vem sendo não apenas o lugar onde a artista e professora Lilian Maus mantém seu ateliê, mas, sobretudo, um local de pesquisa, investigação e contato amoroso. De seu olhar atento à fauna, à flora, às lendas e às histórias da região, Lilian vem produzindo uma obra que trama paisagens vistas e sonhadas. A exposição Miragens – Onde Dormem os Sonhos, em cartaz na Ocre Galeria, reúne um recorte de trabalhos desenvolvidos nos últimos três anos, cruzando elementos e fábulas da região com outras referências da artista ligadas ao seu percurso poético. Baiana de nascimento, a artista usa o deslocamento como método de trabalho e suas andanças reverberam em pinturas, instalações e vídeos, obras impregnadas de múltiplas temporalidades. A perspectiva onírica, como não poderia deixar de ser, inunda a atmosfera do ambiente.
Lendas e documentos históricos inspiram o vídeo Ygápéba (2021-2023), palavra que significa “jangada” em Tupi-Guarani. Como nos conta a artista, o roteiro do filme surgiu após o encontro fortuito de um manual que ensinava a fazer uma jangada, registrado em documento histórico (1703), escrito por Domingos Filgueiras e compilado pelo historiador Fernandes Bastos. Filgueiras foi o primeiro viajante a traçar um Roteiro de Viagem do Litoral Gaúcho, tão propenso a naufrágios. As cenas da embarcação incendiada são inspiradas pela lenda do Navio Iluminado, que surge em 1894, durante a epidemia de “cãibra de sangue”, após o naufrágio do barqueiro Gustavo Voges, na Lagoa da Pinguela, em Osório.
Em pleno seio da pandemia de covid-19, Lilian se propôs a concretizar a imagem sugerida por essas narrativas em parceria com Biel Gomes e os moradores locais, durante a residência artística Casco. No filme, em meio à lagoa dos Barros, em Osório, ao som da trilha de Vagner Cunha, vê-se uma jangada em chamas. Na areia, diante da cena, uma porção de gente vai aos poucos se reunindo para assistir ao acontecimento. Antes e depois, as pessoas aparecem sempre de costas para a câmera. São idosos, adultos e crianças que se aproximam, encantados pela imagem paradoxal – fogo, água e embarcação amalgamados pela poesia –, imagem essa que é vista por nós e por eles. Nesse processo de observação, encantamo-nos duplamente, justamente por esse olhar dobrado, que nos permite ver o outro como espelho de si. Somos todos e cada um dos que naufragam, dos que sonham, dos que se reconhecem no outro. Era uma vez a distinção entre nós e eles.
Esse ver o outro vendo nos leva para uma percepção de mundo que tira o protagonismo do individual, modo de existir tão acentuado pelo universo contemporâneo. As janelas se sobrepõem, do olhar de quem vê in loco, do nosso olhar, do enquadramento, da imagem filmada também através de uma janela. O turbilhão de um mundo múltiplo é inescapável.
É também através de janelas que as pinturas Miragens do Exterior (2024) e Miragens do Interior (2024) se organizam. As paisagens de um dentro e um fora, um lugar privado e outro comum, se misturam levando vestígios arenosos de um ambiente ao outro. Os tons, entre terrosos e azulados, ajudam a construir a ambiguidade entre o que seria o lado interno e o que seria o lado externo – de uma casa? De um farol? De uma concha? Areia desértica e mar se fundem, apontando para a ínfima distância entre tais biomas, o que também acontece na obra Miragens: Fata Morgana (2024), na qual referências às linhas de Nazca, no Peru, convivem com ilhas aparentemente flutuantes. A instabilidade própria das imagens produzidas por miragens irá reverberar também na série Área de Cultivo, em que é o clima aquoso que se sobressai.
Em todas essas obras e nas demais que participam da mostra, Lilian Maus nos convida a aguçar o olhar, o corpo e a subjetividade. Podemos nos afastar e nos aproximar fisicamente de cada trabalho, mas nossas memórias, devaneios e sonhos é que tecem a ponte principal com cada obra e com a galeria inteira. E com os outros visitantes. É preciso lembrar que, para povos indígenas como os Tupi-Guarani, os primeiros habitantes da região de Osório, os sonhos dizem respeito à coletividade, são instrumentos de conhecimento do mundo. Assim, as miragens que nos escapam, mas reverberaram e suplantaram a insuficiência da linguagem falada, podem instaurar uma poética onírica comunitária, grupal, nos (re)aproximando de outras formas de viver junto.
Miragens – Onde Dormem os Sonhos
Obras de Lilian Maus, com curadoria de Gabriela Motta. Em cartaz até o dia 30 de abril na Ocre Galeria (Rua Demétrio Ribeiro, 535), em Porto Alegre. Visitação de segunda a sexta-feira, das 10h às 18h, e aos sábados, das 10h às 13h30min. Conversa com a artista e a curadora no próximo sábado, dia 20/4, às 11h. Entrada gratuita.