Nesta segunda-feira (21), o Brasil lembra os 40 anos da morte de Tancredo Neves. Testemunha ocular e participante daquele momento, o jornalista Antônio Britto, ex-governador do Rio Grande do Sul, relembra, em entrevista à coluna, os bastidores de um dos episódios mais dramáticos da redemocratização brasileira.
Porta-voz do presidente eleito que não chegou a tomar posse, Britto conta como foi viver, ao mesmo tempo, o luto pessoal e a responsabilidade histórica:
- A esperança também foi para cirurgia - contou.
Na conversa, direto dos EUA, onde visita o filho, ele reflete sobre o impacto daquele momento e o que restou da política que, à época, ainda enchia praças de gente e de sonhos.
A morte de Tancredo representava um choque entre a expectativa do Brasil e a tragédia pessoal. Do ponto de vista do ser humano, como foi viver tudo aquilo?
Ali, a gente teve um choque terrível de administrar o que deveria ter sido: uma transição democrática, a abertura de uma nova forma de diálogo com a imprensa e com a sociedade. Tudo foi pensado com esse objetivo e, de repente, toca o telefone e, daqui a pouco, a gente está em um hospital e, daqui a pouco, a gente tem um drama pessoal e familiar no qual vai para dentro dele. O país todo foi para dentro do drama da família Tancredo. Mas a gente era obrigado, pela função, a viver o drama familiar e a se dar conta, desde o primeiro momento, que, ali, havia um drama nacional, uma construção extremamente difícil para sair da ditadura. Também a esperança foi hospitalizada, também ela foi para cirurgia, também ela correu risco. A partir de um determinado momento, presumindo que era cada vez mais difícil que o doutor Tancredo sobrevivesse, pensávamos o que a gente podia fazer para que a esperança sobrevivesse, porque ele era a esperança. Sem ele, como fazer para que não fosse interrompido aquele momento super bonito. A gente teve o choque da surpresa, de mergulhar em um drama inacreditável de sete cirurgias em 38 dias e a responsabilidade de tentar manter viva a esperança na redemocratização, mesmo na falta do fiador dessa redemocratização.

Como foi a aproximação com Tancredo? O senhor era um jornalista de Redação até que veio o convite para ser porta-voz do futuro governo?
Eu cobria política para o Jornal Nacional. Era impossível cobrir política naquele momento sem ter o doutor Tancredo como uma das duas ou três pessoas de contato obrigatório. Depois, passei a ser o diretor de Redação da Globo. Aí, tinha ainda mais contatos com ele. Naquela campanha toda, nunca tive uma relação pessoal diferenciada. Tenho muito orgulho de ter sido escolhido porque ele e o Mauro Salles queriam uma organização diferente, o modelo americano, de um porta-voz, que falasse diariamente pelo presidente. Essa seria a minha função: passar o dia recolhendo demandas dos jornalistas e conversando com o presidente sobre cada uma das delas. Inacreditavelmente, nada disso acabou acontecendo, mas foi para isso que eu fui levado para lá

O anúncio do falecimento foi o clímax de uma situação que vinha se arrastando há muito tempo. Em que momento o senhor percebeu que a situação era irreversível?
A partir desse momento, comecei a sofrer sem poder falar com ninguém, (pensando) o que iria acontecer ao país quando fosse anunciado que o presidente... que a gente perderia o presidente.
Primeiro havia aquela expectativa de que era uma surpresa, mas o presidente iria se recuperar. Depois, a sucessão de cirurgias e de problemas apontaram na direção de que, obviamente, a situação era muito, muito grave. E, a partir de um determinado momento, faltando sete, oito dias para a morte do presidente, o sentimento que os médicos nos passavam era de que a situação realmente estava se tornando irreversível. A partir desse momento, comecei a sofrer sem poder falar com ninguém, (pensando) o que iria acontecer ao país quando fosse anunciado que o presidente... que a gente perderia o presidente. (Pensei) que tipo de anúncio seria digno para uma história inacreditável como aquela, mas que tipo de anúncio passaria uma mensagem que dissesse: "Olha, a gente perdeu o fiador da transição, o grande construtor, mas a gente não pode perder a nova República, a democratização". Aquilo ali foi começando a pesar de uma forma muito grande, primeiro porque, quase que de forma solitária, comecei... coisa de jornalista... Comecei, com todo o cuidado, a rascunhar o que seria (o anúncio). Geralmente, eu andava de paletó, e aquele bolsinho que fica por dentro do lado esquerdo do paletó pesava 300 quilos, porque ali um tinha uma minuta. Em determinado momento, dois ou três dias antes da perda do presidente, discuti o texto com duas ou três pessoas, e a gente chegou à conclusão de que aquele era um texto adequado. Era muito breve.
Hoje, o senhor repensa aquele texto? Teria falado outras coisas?
Acho que não, ali havia a preocupação de, solenemente, comunicar que o presidente acabara de falecer e passar a mensagem de que ele havia até se sacrificado em nome da causa do país, a volta da democracia. E que essa causa, mesmo perdendo o doutor Tancredo, não estaria perdida. Quarenta anos depois, quando reflito um pouco, vejo com alegria que a democracia tem resistido a quase tudo. Mas vejo com muita tristeza que ela resistiu, mas que a política se enfraqueceu. Tenho olhado as imagens daquele período: são praças cheias. Quem encheu as praças? A política. E em que clima? De alegria e de esperança. As praças hoje não se enchem e, quando aparece alguém nas praças, é muito mais movido por ódio ou carregando desesperança e desconfiança sobre a política. Esse é o grande passo atrás dos 40 anos (da morte de Trancredo). O passo à frente é que seguimos democráticos e seguimos resistindo mas tem um passo atrás. A política não vale mais o que valia, e isso é muito perturbador. Cobri, como repórter, a campanha das Diretas Já. O que que era a política? Rimando com alegria e com esperança? Escreve aí, na página 2 (de ZH) que política é sinônimo de esperança e de alegria
É verdade que o senhor ficou um certo tempo sem assistir ao vídeo em que anuncia a morte de Tancredo?
Fiquei alguns anos, porque não me dava coragem de ver. Aí, um dia, eu estava em um cinema em Porto Alegre, vendo um filme sobre o Cazuza. No meio do filme, aparece, apareço, anunciando. Foi curioso, mas foi exatamente assim.

E a história da foto? Até hoje muita gente fala que a imagem de Tancredo foi montada. O que aconteceu ali?
Aquela foto é a infelicidade da infelicidade
Aquela foto é a infelicidade da infelicidade, porque, desde o dia em que o doutor Tancredo foi internado, a demanda número 1, número dois, número três da imprensa era obter uma imagem do presidente. Nas conversas internas e também junto aos jornalistas, eu disse: "Olha, essa imagem vai acontecer quando houver duas autorizações: uma dos médicos, dizendo ele está bem ou que está começando a se recuperar, e outra, obviamente, da família. Em nenhum momento pressionei. Certo dia, houve um espaço de melhora, onde o presidente se sentiu ou foi avaliado como um pouquinho melhor, e própria dona Risoleta (esposa de Tancredo) entendeu que era o momento de fazer a foto. A gente tomou cuidado. Na época, o filme foi revelado no laboratório da Polícia Federal. Quando o Gervásio Batista (o fotógrafo oficial da presidência) voltou da PF, ele me entregou o filme, e eu o entreguei inteiro para a família. Separei duas ou três fotos: mostravam o sofá, os médicos, a dona Risoleta e o presidente. E ninguém que bate foto com soro vai estar carregando soro no rosto, como se fosse um troféu então o soro foi colocado abaixo. Desci para divulgar as fotos e, quando subi no elevador, um dos médicos do presidente me disse: "Britto, aconteceu um problema a coisa piorou bastante". Eu me dei conta na hora que não teriaquem conseguisse explicar que aquilo ali havia sido uma tremenda infelicidade. Nenhum de nós conseguiria a cumplicidade dos médicos, da família e da esposa para pegar o presidente, passando mal, e fazê-lo parecer que estava passando bem para bater a foto. Foi uma foto que todo mundo desejava, tirada em uma hora possível, que se revelou a pior hora possível três ou quatro horas depois.
Durante aquele período, o senhor sentiu muitas pressões de diferentes setores da sociedade? Os militares, por exemplo.
Hoje, a gente pode considerar como um fato historicamente comprovado: a maioria das Forças Armadas entendia que havia chegado o momento de uma transição e confiava que essa transição se desse com a figura do doutor Tancredo. Mas desde a campanha Tancredo e Paulo Maluf, desde agosto de 1984, era facílimo identificar, principalmente entre o pessoal da chamada comunidade de informações, uma última resistência. Era uma resistência que nenhum de nós considerava majoritária, sequer dentro das Forças Armadas, mas uma não conformidade. Tudo foi feito principal e pessoalmente pelo doutor Tancredo para conter, anular, com a ajuda de militares, como por exemplo, o general Leonidas da Silva. A partir de setembro ou outubro, o doutor Tancredo começou a se sentir um pouco doente e a se dar conta de que precisaria fazer política com a própria saúde: aparecer como um homem idoso, fragilizado por doença, enfrentando Maluf de um lado e dando chance para uma resistência. O doutor Ele fez política com a própria saúde. Por essas coisas da história, por 14 ou 16 horas, ele perdeu a corrida na medida em que teve que se hospitalizar na véspera (da posse). Tanto isso é verdade que, no dia seguinte, Figueiredo se recusa passar o cargo para José Sarney. Houve uma amostra de que a situação era construída. Ninguém ia impedir a Nova República, mas ninguém era ingênuo de achar que o Brasil tinha 100% de entusiasmados adeptos da volta à democracia.

Como Tancredo descreveria a política hoje?
Sempre que essa questão aparece, prefiro tratar não por meio de ideologias, mas de temperamentos. Como o do doutor Tancredo. São fundamentalmente temperamentos que de pessoas que gostam de ouvir, de construir, de dialogar. Em nenhum momento da história ele ficou no oito e no 80: a construção do parlamentarismo para viabilizar João Goular, a forma como ele tentou nos últimos momentos do governo Getúlio Vargas contribuir para uma solução que acabou não sendo encontrada. É isso que marca mais do que a posição política. Ele era uma pessoa que tinha prazer no diálogo, vocação para o diálogo. É incrível que alguém pense que a política dispensa o diálogo. Pessoas com o temperamento do doutor Tancredo sofreriam e sofrem muito nos dias de hoje no Brasil e, cá entre nós, no mundo.
Como o senhor avalia a política hoje?
A gente está vivendo um processo de radicalização e de descrença na política. É um fenômeno global e que, no Brasil, acabou tendo expressões extremamente prejudiciais ao próprio país. Não há país no mundo que possa abrir mão de ter um setor conservador que, normalmente, prioriza as questões da propriedade, da ordem, e de ter um setor à esquerda, que prioriza temas sociais, diversidade. Qualquuer país tem de ser construído a partir da coexistência de visões diferentes da sociedade. Não é possível que o pressuposto para um país seja a ideia de que um dos dois segmentos não deveria existir ou, se existir, não pode falar ou não pode ganhar. Vejo com muita tristeza que no Brasil, hojem se conversa muito mal, se conversa pouco e mal. Tenho esperança de que o pior disso já tenha passado. Tenho lá no fundo a mania de ser otimista. Tenho a esperança de que o combustível que moveu essa radicalização já esteja acabando.
Deus me livre! (sobre voltar à política) É preciso bater palmas para quem continua na política, porque ela se tornou um exercício extremamente complicado no Brasil.
O senhor voltaria à política?
Deus me livre! É preciso bater palmas para quem continua na política, porque ela se tornou um exercício extremamente complicado no Brasil. Temos uma perda de importância dos partidos, uma absoluta perda de potencial dos políticos, formadores de opinião. Vivemos uma predominância do político que, a rigor, nem político deveria se chamar: é formado por alguns movimentos de ocasião, baseados em redes sociais, o político municipalista, a expressão de uma única região, de um único município.O exercício da política ficou muito complicado.
Vemos presidentes falando no improviso. A figura do porta-voz, como o senhor foi, seria importante?
Eu acho que o dever de prestar contas à sociedade não pode ser feito de vez em quando. Diariamente, a imprensa terá dúvidas que expressam os questionamentos da sociedade. O diálogo do governo A, B, C ou D ele tem que ser diário. Às vezes, tem de ser mais do que diário: de hora em hora em hora. No passado, esse diálogo era feito exclusivamente pela figura do governante. Desse raciocínio decorre como consequência a ideia de que os governos tenham estruturas que dêem satisfação, que comuniquem, expliquem, anunciem e, eventualmente, terá a participação do presidente. Não acredito nesses modelos em que a comunicação feita só pelo presidente. Ele é o símbolo. É super importante, mas, até em proteção à importância da presidência... Não há presidente que aguente ter de dar explicações 24 horas por dia, durante quatro anos. Acho que a estrutura que os americanos e os franceses adotaram continua sendo a a que mais concilia prestar contas (à população) e não desgastar a figura do governante maior.
Como é que o senhor avalia o processo da anistia dos manifestantes dos atos de 8 de janeiro de 2023?
Não pode haver caminho democrático que não seja o de julgar as pessoas e, em havendo a comprovação de que conspiraram contra a democracia... A democracia, em defesa dela própria, precisa agir com todo o rigor que a lei permita. O que tenho tido um pouco de dificuldade de entender vai um pouco na linha do que o ministro Fuchs manifestou: se os diferentes graus de participação e responsabilidade não forem proporcionalmente trabalhados e observados, a gente ou pune pouco, porque pune com base nos que pouco fizeram, ou pune demais, quando coloca a questão como se todos tivessem tido a mesma participação e a mesma responsabilidade. A opinião pública cobra a famosa expressão que qualquer aluno de direito morria de medo: a dosimetria da pena. Cada um vai ter de responder na medida do que fez. Espero que seja encontrada uma solução que concilie isso: que puna na medida da participação e daquilo que cada um fez. E haverá quem conspirou fortemente contra a democracia, haverá quem foi no embalo e quem foi vândalo. Várias categorias cabem, vários papéis cabem nesse filme.