
A Igreja Católica muda devagar. Como toda instituição humana (ainda que também santa), ela é movida pela política. Seus movimentos são pendulares: ora com um papa conservador, ora com um pontífice reformador a liderar o rebanho.
João Paulo II marcou uma geração como o "Papa pop", mas era extremamente conservador em termos doutrinários. Bento XVI, seu sucessor, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (herdeira da Inquisição), consagrou-se, nas vestes e na agenda, como um pastor ainda mais apegado ao catecismo.
Então, veio Francisco, "do fim do mundo", como ele mesmo dissera, a revolucionar, intra e extramuros, a instituição à qual se filiam 1,3 bilhão de fiéis.
A era bergogliana, em alusão ao nome de batismo de Jorge Mario Bergoglio, foi marcada, desde seu início, por sinais de que novos e "buenos aires" soprariam no Vaticano.
Em 13 de março de 2013, ao aparecer pela primeira vez ungido o 266º Papa da Igreja Católica perante a multidão, na sacada da Basílica de São Pedro, ele vestia apenas branco, abrindo mão das roupas pomposas, com acabamento em ouro e o casulo vermelho, que conferiam um visual majestoso do antecessor.
— Antes de o bispo abençoar o povo, peço a vocês que rezem para que o senhor me abençoe — pediu.
Qual Papa em vez de dar a bênção pede a bênção a seu povo?
O nome escolhido ainda dentro da Capela Sistina, enquanto do lado de fora o rebanho católico celebrava a fumaça branca, esbanjava simplicidade: era uma reverência a São Francisco de Assis, padroeiro dos pobres.
O primeiro papa do continente americano, um jesuíta argentino, escolheu ali privilegiar os pobres em vez da doutrina. Quando as cortinas do balcão da basílica se fecharam e o mundo buscava no Google descobrir mais sobre quem era aquele jesuíta argentino, o primeiro papa do continente americano, Francisco desceu até o térreo no Vaticano, dispensou o carro particular que estava a sua disposição e embarcou, junto com os ex-colegas cardeais, em uma van de volta à Casa Santa Marta, como se fosse o final de expediente de um dia normal. Nas semanas seguintes, ele também abriria mão de morar no Palácio Apostólico para viver em um apartamento simples.
Ao longo de 12 anos de pontificado, comemorados em março, Francisco cumpriu o que prometera: por meio de gestos e palavras, privilegiou os pobres em vez da doutrina.
Tão ou mais carismático do que João Paulo II, esbanjava bom humor. E, sempre que podia, buscava aproximar a Igreja, que perdera espaço para outras religiões nos diferentes quadrantes, de seus fiéis.
Não forçou uma visão idealizada de família, acolhendo a comunidade LGBTQI+ e pessoas divorciadas. E conectou, por meio de três encíclicas, um documento que costuma trazer a marca dos pontificados, os temas fundamentais da contemporaneidade ao exercício da fé.
Ao longo de uma década, foram três: Lumen fidei (Luz e fé, 2013), que encerrou a trilogia iniciada por Bento XVI sobre teologia; Laudato si (Louvado seja, 2015), sobre o aquecimento global; e Fratelli tutti (Todos irmãos, 2020), sobre fraternidade e amizade social. Com apenas cinco anos no trono de São Pedro, ele já havia ungido 878 santos, mais do que o dobro de João Paulo II (482) em 25 anos de pontificado.
À frente da Igreja, Francisco não se furtou de abordar os principais temas políticos da humanidade nesse mundo em convulsão: além da proteção ao ambiente e a defesa de um modo de vida mais sustentável, tema de sua sua segunda encíclica, foi incansável na condenação da guerra na Ucrânia e na defesa dos refugiados.
No entanto, o que faz dele um Papa histórico do ponto de vista geopolítico, foi a mediação que permitiu a reaproximação entre Estados Unidos e Cuba, em 2014. A pregação do encontro, do diálogo e do testemunho transbordaram para fora do Vaticano no diálogo interreligioso, com encontros com o patriarca Kirill, da Igreja russa, e com o Islã.
Das várias imagens de um dos papas mais fotografados da história, uma adquiriu simbolismo especial: em meio a uma tempestade em Roma, quando a pandemia de covid-19 se abateu sobre a Terra, o papa solitário rezou na Praça de São Pedro. Suas vestes brancas contrastavam em meio à escuridão que se abatia sobre a humanidade.

O discurso reformista e as mudanças na Cúria Romana, o governo da Igreja, conhecida pela inércia, movimentou resistências. Em 2015, 13 cardeais conservadores assinaram uma carta apontando que a Igreja enveredava para um "caminho liberal".
Outra dificuldade de seu reinado foi o tema dos abusos sexuais de padres e o silênco dos bispos. Diante dessa chaga aberta no coração do Vaticano, Francisco ordenou "tolerância zero" e aboliu o "sigilo pontíficio". Mas os gestos foram insuficientes diante de tamanha tragédia.
Nos últimos anos, Francisco, que conviveu por sobriedade por 10 anos com um papa emérito, seu antecessor, Bento XVI, demonstrava as fragilidades da idade. O calvário de Francisco incluía dores persistentes no joelho direito devido à artrose, diverticulite, febre frequente e bronquite.
Como poucos, Francisco moldou em vida o Colégio Cardinalício a sua imagem e semelhança. Boa parte dos 132 cardeais eleitores (de um total de 226), foi nomeado pelo papa argentino. Sendo assim, dificilmente haverá, a curto e médio prazos, recuos na era bergogliana. Tudo indica que o sucessor terá um perfil semelhante ao de Francisco, ainda que dificilmente o supere em simpatia.
Os ventos da mudança continuarão a soprar na Praça de São Pedro por décadas depois do descanso de um dos papas mais carismáticos da História.