Nesses tempos bicudos planeta afora, não poderia ser mais apropriado o nome da reportagem-bomba publicada pelo grupo de profissionais do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) no final de semana: Pandora Papers.
O mito grego de Pandora, como se sabe, remete à primeira mulher criada por Zeus e enviada à Terra transportando uma caixa que, sob nenhuma hipótese, deveria ser aberta. Curiosa, ela a abriu e, com isso, liberou todos os horrores do mundo, ainda desconhecidos pela humanidade. Quando a fechou, deixou lá dentro a esperança, que não conseguiu sair.
De fato, está cada vez mais difícil sentir aflorar a esperança, especialmente na era covid-19, quando todos os males - da corrupção, da negação da ciência, parecem encarnados em um só tempo.
Pela perspectiva política, os Pandora Papers atingem vários quadrantes. O resumo da ópera é o seguinte: líderes políticos e econômicos têm se aproveitado de offshores para legalmente abrir empresas, escondendo, assim, atividades de lavagem de dinheiro. Nada muito novo. Só que, agora, graças à tecnologia, é possível rastrear, catalogar, decifrar e... narrar/denunciar.
Por exemplo: desde 1999, quando foi entronado, o rei da Jordânia, Abdullah II, teria criado uma rede de empresas offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, entre outros paraísos, para comprar 15 imóveis. No pacote de patrimônios, estão três mansões com vista para o mar de Malibu, na Califórnia, no valor equivalente a R$ 365 milhões. A Jordânia é um dos países mais pobres do Oriente Médio, e o clã real comanda um regime autoritário há décadas.
Outra ponta da investigação, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e a mulher, Chery, economizaram de imposto sobre transação imobiliária cerca de R$ 2,3 milhões ao comprarem uma torre no centro de Londres. Informação privilegiada é o mínimo, além de, conforma a acusação, sonegação fiscal.
Mais uma: o presidente russo, Vladimir Putin, é um habitué das investigações internacionais levadas a cabo pelo consórcio de jornalistas. É a terceira em que ele aparece, depois dos Panama Papers e Paradise Papers. Desta vez, manteria ativos secretos em Mônaco.
A família Aliyev, do Azerbaijão, adquiriu propriedades no Reino Unido, usando empresas em paraísos fiscais. A um primeiro olhar, o impacto do país asiático no cenário internacional é quase nulo. Não fosse um dos negócios feitos entre o laranjas do presidente, Ilham Aliyev, com o Crown Estate, entidade que administra o patrimônio da monarquia britânica.
Também o Brasil tem uma ponta nas denúncias. O projeto expôs os US$ 9,55 milhões mantidos pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, nas Ilhas Virgens Britânicas. (leia aqui, na Revista Piauí, uma das integrantes do consórcio no país).
No âmbito regional, três presidentes aparecem: Sebastián Piñera, do Chile, Guillermo Lasso, do Equador, e da República Dominicana, Luis Abinader. Onze são ex-presidentes, entre eles os colombianos César Gaviria e Andrés Pastrana.
Além de atores políticos, há personalidades do entretenimento: Shakira, Ringo Starr, Elton John e outros artistas estão citados nos Pandora Papers.
O risco de um trabalho gigantesco como esse é mirar alvos tão distintos, na casa das dezenas, a ponto de perder o foco e, por vezes, deixar de atrair o interesse da opinião pública de cada nação atingida por um escândalo.
São pelo menos 30 líderes mundiais e mais de 300 altos funcionários. Cerca de 600 jornalistas de 117 países trabalharam nos documentos recebidos um ano atrás, por meio de vazamento.
A despeito do interesse público dos documentos, cabe uma reflexão que não será respondida nos próximos dias - até pela garantia do direito à confidencialidade das fontes.
Quem estaria por trás do vazamento verificado pelos repórteres, profissionais gabaritados, dentre os quais colegas de Agência Pública, Piauí, Poder 360 e Metrópoles, no Brasil, e renomados players mundiais, como La Nacion, El País e The Guardian?
Não é um trabalho fácil. Por trás da reportagem, estão apuração e verificação de 11,9 milhões de arquivos, entre textos, planilhas, imagens e e-mails em diferentes idiomas.
Governos magoados com postura de rivais não faltam. A pandemia fez aflorar desunião entre os membros da União Europeia (UE). A Rússia voltou a desafiar a estabilidade do Velho Continente, com dedos sobre o Leste Europeu. A França está desgostosa com o tratado da venda de submarinos de propulsão nuclear de EUA para a Austrália, com perdas bilionárias do ponto de vista comercial (foi recente, mas a negociação ocorria havia meses). E a China se consolida como potência desafiante do Ocidente no sistema internacional.
Não se trata aqui de reduzir o impacto das denúncias. Mas de refletir sobre o que muitos, na discussão estratégica atual, consideram o vazamento de informações como parte de uma guerra de quarta geração, com o uso de informações virtuais com impactos diretos no mundo real.