Uma das dicas preciosas que recebi quando, repórter iniciante, passei a fazer reportagens internacionais, 20 anos atrás, foi:
- Não esqueça o olhar do ET.
O editor me explicou:
- Imagine que você é um ET recém-chegado a uma cidade. Tudo para onde você olha lhe chama a atenção - e, por consequência - será interessante também para o seu leitor.
O que por anos chamamos na Redação de ZH de “Olhar de ET” era nada mais do que um segredo para aguçarmos nossa curiosidade, driblarmos o olhar viciado de quem, acostumado a testemunhar os dramas de sua cidade, por vezes, deixa de se surpreender - o que, para um repórter, significa a morte da percepção jornalística e, ato contínuo, da própria reportagem.
Desde 2001, adotei essa “técnica” ao desembarcar no Haiti devastado por um terremoto, na Líbia sob bombas, no Iraque imerso no terror do Estado Islâmico, na Venezuela da ditadura Nicolás Maduro.
Me peguei pensando no fim de semana sobre o que um ET veria se desembarcasse na Terra neste 30 de março de 2020: a pujante Times Square, de Nova York, esvaziada, um Papa sem o seu rebanho no Vaticano, uma Espanha e uma Itália soterradas por caixões, um Brasil entre um presidente que proclama a necessidade de não parar a roda da economia - que, por certo, irá cobrar seu preço ali na frente - e a orientação médica, técnica, eu diria até instintiva, de que é fundamental ficar em casa.
Se no asfalto e calçada das cidades há poucos terráqueos, nosso visitante certamente se surpreenderia se elevasse seu pescoço de ET para cima e observasse, nas sacadas, seres humanos tocando violino nos prédios das Ramblas de Barcelona, espiasse pais, mães e filhos jogando videogame em uma sala em Londres, um maratonista perfazendo os 42 quilômetros da maratona na varanda em Alma (França), alguém batendo panela no Bom Fim, em Porto Alegre. Nas suntuosas edificações das Nações Unidas, em Manhattan, do Banco Mundial (Bird), em Washington. ou da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, veria, pelas janelas, corredores acarpetados vazios. Nos palácios da Europa, poucos funcionários e alguma movimentação nos gabinetes presidenciais ou dos primeiros-ministros. Engravatados, políticos das nações mais poderosas do planeta estariam na frente de telas gigantes conversando entre si por videoconferência. Que mundo é esse, pensaria nosso ET?
Esse é o nosso planeta neste 30 de março de 2020, no momento em que contamos 700 mil pessoas contaminadas pelo coronavírus, segundo o centro de monitoramento da doença da Universidade Johns Hopkins, que compila informações oficiais de todos os países. A OMS tem um número um pouco menor - 638 mil. Os mortos, segundo a primeira instituição, contabilizam 32 mil (30 mil para a OMS). O ET não saberia, a menos que tivesse feito o tema de casa, que na Terra essas estatísticas são superiores a de outros grandes eventos trágicos que nos marcaram nas últimas duas décadas: é quase o dobro de óbitos da pandemia do H1N1, em 2009, o mesmo custo em vidas da invasão do Iraque, em 2003, e como se o 11 de setembro de 2001 se repetisse 10 vezes.
Talvez, ao saber disso, o ET pegasse sua espaçonave e voltasse para seu mundo. Nós, não podemos.
Outra dica que aprendi ao longo dos anos de cobertura de guerras e catástrofes, é que, diferentemente de soldados ou populações que sofrem, nós, jornalistas, sempre conseguimos sair dali a qualquer momento e voltar à segurança e ao conforto de um hotel ou de uma redação. Desta vez, no meu caso, como repórter, a pandemia pode até ficar do lado de fora das paredes do apartamento, mas atormenta meu sono. O ET vai embora. E nós, terráqueos, ficamos com o que resta de racionalidade e coragem de aprender com os nossos erros - e os de China, Itália e Espanha.