
No Evangelho de Marcos, uma passagem espetacular é quando Jesus cura um doente num sábado. Os fariseus, sempre tentando sabotá-lo, perguntam se ele acha mesmo correto fazer aquilo — já que o sábado, em nome de Deus, deveria servir somente ao descanso. A resposta de Jesus é uma revolução: "O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado".
Quer dizer: a lei deve existir para servir às pessoas, não para subjugá-las. As instituições existem para nos fazer crescer, para nos fazer felizes, livres. Se a instituição não ajuda, não é o homem que deve mudar, é ela. Essa é a grande virada que Jesus promove em relação ao Antigo Testamento.
Quase dois milênios depois, ciente de que vinha errando bastante, a Igreja Católica — a "esposa de Cristo" — busca se redimir com o Concílio Vaticano II. Na solenidade de abertura, em 1962, o papa João XXIII já deixa claro: "A Igreja sempre se opôs a erros, muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade".
Não é bonito? Ao contrário dos concílios anteriores, mais preocupados em elencar pecados e dogmas, desta vez a Igreja escolhe a clemência em vez do castigo, o acolhimento em vez da repulsa.
Essa nova diretriz acerta em cheio o clericalismo — que é a interferência do clero, dos padres, do sacerdócio na vida social e moral dos fiéis. É quando o padre diz o que é certo, o que é errado, o que pode, o que não pode. A orientação do concílio vem no sentido oposto: reconhece que as pessoas podem decidir muita coisa por conta própria.
O nome disso é autonomia das consciências. Ou seja, eu me acerto com Deus, eu sei o que Ele quer de mim. Se alguém disser, por exemplo, que Deus me proíbe de curar um doente no sábado, tudo bem, posso até respeitar, mas minha consciência diz que não serei punido por isso e ponto final. O papa Francisco foi o maior entusiasta dessa premissa. Só no seu papado é que ela foi plenamente assumida.
— O confessionário não pode ser uma sala de tortura — ele disse.
— Se uma pessoa é gay e busca Deus, quem sou eu para julgá-la? — ponderou.
— Os divorciados não devem ser tratados como excomungados — pediu também.
Entre tantos papas que defenderam a doutrina, Francisco será lembrado como aquele que defendeu as pessoas. Não suavizou princípios, mas os colocou em perspectiva: sempre do lado de quem sofre, de quem tenta, de quem ama. Um papa que não quis substituir a consciência de ninguém — quis apenas ajudá-la a se formar.