
Vista de binóculo, a política externa de Donald Trump parece uma doideira ao alienar os parceiros mais fiéis e históricos dos EUA para caminhar de braços dados com a Rússia de Vladimir Putin, capo de uma oligarquia que está sendo recompensada pela invasão de um país vizinho.
Vista com lupa, a doideira é ainda mais assustadora. Para além do vaivém tresloucado das tarifas, os movimentos de Trump sugerem que, sob seu bastão, os EUA desembarcarão de iniciativas ou enfraquecerão organizações que asseguraram alguma ordem e estabilidade mundiais desde a Segunda Guerra. Conselho dos Direitos Humanos da ONU, Organização Mundial da Saúde e Corte Internacional de Justiça são os primeiros na sua lista, mas o plano é desidratar toda e qualquer instituição que represente o grande alvo de Trump: o globalismo.
Contingência de um mundo hiperconectado no qual produção econômica, comércio, comunicações e culturas se entrelaçam, o globalismo é rejeitado pela extrema direita, que o encara como um contraponto do conservadorismo. Ok, tudo isso é teoria que dá pano para anos de debates. Na prática, a estratégia trumpista de puxar o tapete da Ucrânia e peitar antigos aliados visa a se aproximar de Putin e esvaziar a aliança entre Rússia e China, esta sim a grande adversária do poder global dos EUA.
No horizonte do trumpismo, está a crença numa “Europa decadente” e no surgimento de três polos de poder no planeta: Washington, Moscou e Pequim. Paradoxalmente, com sua obsessão pelo isolacionismo do America first, Trump empurra antigos aliados europeus, asiáticos e latino-americanos para os longos braços da China.
A China se mostra pronta para abraçar os deserdados de Washington. A dependência de países com forte exportação agrícola, como Brasil e Argentina, o atacadão global online chinês e o crescente mercado para veículos made in China são a ponta do iceberg. Abaixo da linha d’água, está o surgimento de novos gigantes da tecnologia, como a DeepSeek, cujo modelo barato de desenvolver inteligência artificial retirou, em um só dia, U$ 1 trilhão em valor de mercado das bigs digitais dos EUA.
O próximo passo da China é a expansão de seu poder militar. Pequim já conta com três porta-aviões, entre os quais o recém-lançado Fujian, que opera em nível equivalente aos mais avançados similares dos EUA. Como a Ucrânia está sendo sacrificada no altar do trumpismo, Pequim ganha confiança de que o mesmo pode acontecer com Taiwan. A ilha tem, ou tinha, apenas os EUA para protegê-la da anunciada intenção chinesa de anexá-la, e, de quebra, abocanhar sua crucial produção de chips de última geração. Se e quando ocorrer a invasão de Taiwan, aí, sim, vamos ver aonde foi parar a nova ordem mundial.