O verbete favorito de Luís Augusto Fischer, professor titular de Literatura Brasileira da UFRGS, é “tri”. Assim mesmo: tri legal, tri divertido. Tri bem bolado. É o que se tornou o Dicionário de Porto-Alegrês, fotografia em movimento do modo como falamos na Capital, espelho da identidade local em todas as suas manhas semânticas e prosódicas, tá ligado(a)? Balaca que deu de lavada. Um clássico prestes a completar 25 anos.
Bem capaz que eu não escreveria sobre isso. Não sou porto-alegrense da gema, mas já me considero uma, porque falo igualzinho ao compilado de palavras reunido há décadas (e obsessivamente) pelo professor.
Fischer começou essa história meio de revesgueio, em 1982, quando, em uma pequena livraria de Buenos Aires (fazido!), ele deu de cara com um antigo dicionário de lunfardo (com gírias usadas nas letras dos tangos argentinos — veja a foto acima).
Te mete!
— Falei para o meu amigo Antônio Aladrén, o Toninho, já falecido, que estava comigo: “Bah! Daria para fazer isso em Porto Alegre!” — recorda o autor, que na época atuava no Colégio Anchieta e cursava mestrado na UFRGS.
Dali em diante, ele passou colecionar palavras. Literalmente. Anotava termos em canhotos de cheque, guardanapos e notas fiscais. Por mais de 10 anos, foi juntando a papelada dentro de uma caixa de sapatos. Até que, nos idos da década de 1990, por essas voltas que o destino dá, trabalhou com o cantor e compositor Nei Lisboa na Secretaria Municipal de Cultura.
Nei, veja só, entendia de computador e ensinou Fischer a usar o PC (em especial, um ficheiro digital e, depois, o Word). Lembre-se: era a Idade da Pedra da informática. Foi uma revolução, e a coisa finalmente deslanchou.
Em 1997, o professor passou a assinar uma coluna semanal no jornal ABC Domingo, do Vale do Sinos. Um dia, publicou parte das anotações no periódico e gostou da repercussão. Depois, em 1999, foi convidado por Carlos Gerbase a divulgar mais um trecho no blog da Casa de Cinema.
— As pessoas estavam começando a usar a internet. Lembro que foi um estouro, ao menos na minha bolha. Aí a Katia Suman, então na rádio Ipanema, me convidou para ir ao estúdio falar sobre o assunto. Foi em maio de 1999. Ficamos a tarde inteira no ar, e isso acabou originando o Sarau Elétrico e impulsionando o Dicionário — destaca Fischer.
Assim, na Feira do Livro de Porto Alegre (te mete!) de 1999 nasceu a primeira edição do best-seller, com ilustração do cartunista Moa, que até hoje se orgulha disso.
— Adorei ilustrar o Dicionário. Eu dava risada lendo. É o máximo do humor — diz Moa.
Como diz o editor Ivan Pinheiro Machado, da L&PM, é “genial”. Ou seria preza (com o e bem aberto, em bom porto-alegrês)?
— Virou sucesso porque a gente se vê ali, e o melhor: de uma forma muito engraçada — resume Ivan, lembrando o caso de um gringo que comprou o livro na PocketStore para tentar entender, finalmente, o significado de “capaz”.
Da missa, não contei a metade, mas já sei que o professor vai dizer que ficou “tri” (ele sempre diz isso), enquanto registra, claro, uma nova expressão no caderninho.
Precisei, em suma, me comportar como um marciano que houvesse baixado aqui, de forma a estranhar aquilo que era e é familiar
LUÍS AUGUSTO FISCHER
No primeiro prefácio de "Dicionário de Porto-Alegrês", em 1999.
A festa
A festa de aniversário será na Feira do Livro de Porto Alegre, dia 11 de novembro, às 18h, no Espaço Força e Luz (Rua dos Andradas, 1.223), em um bate-papo com Fischer, José Falero e Katia Suman. Baita!
O sucesso
O Dicionário de Porto-Alegrês foi o livro mais vendido nas feiras de Porto Alegre de 1999 e de 2000. Na primeira, Fischer achava que venderia "uns 200". Foram mais de 5 mil. Ele acredita que, hoje, já tenha passado dos 20 mil exemplares comercializados.
Uns verbetes de lambuja
Selecionei algumas gírias do livro. Dá “um conferes” no resumo de cada uma:
A dar com pau
Em grande quantidade, muito, fartamente. O mesmo que "a três por dois" (v.). "Tinha gente a dar com pau", por exemplo.
A toda
Rapidamente, velozmente, no maior "pique" (v.) possível. Tem tudo para ser uma redução da expressão "a toda velocidade".
Aê
Forma que começou a ser usada por escrito no mundo da internet, nos blogs e tal. É o velho "Aí" (v.), só que usado imitando a pronúncia porto-alegrense, em que de fato a gente aumenta o i para e, por exemplo nas saudações. "E aí?", querendo significar "Como anda tudo contigo?". Ver "Foi mal aê".
Bater o horror
Expressão de largo uso para designar situações em que, bem, "bateu o horror": deu confusão, deu briga, deu merda em geral, as esperanças foram perdidas inapelavelmente. Também se diz "tocar o horror", no mesmo sentido.
Bem louco
Sujeito que tenha ficado em estado de excitação, por motivos bons ou maus, diz que ficou "bem louco", mas sem pronunciar o u. "Fiquei bem lôco com a mina". Se usa bem antes de "louco" como excitado por drogas, creio. Ver "louco de cara" e "de cara".
Bem nessas
Expressão de concordância com os termos anteriormente mencionados. Alguém diz: "Quer dizer então que além de tudo tu ainda perdeu o dinheiro?". E a gente responde: "Bem nessas", algo como "Exatamente nesses termos", por aí.
Bota uma manguinha
Isso é frase de mãe para filho – tenha ele 7 ou 70 anos – na despedida, quando ele vai sair de casa. Significa levar um casaquinho, um abrigo para a eventual intempérie, para o frio, que como sabemos pode mesmo ser traiçoeiro aqui no paralelo 30 Sul. Ver “Manguinha”.
Cagaço
Medo, susto; origem mais que óbvia. De larguíssimo uso.
Deixa quieto
Frase que resume toda uma sabedoria de cautela, de aviso, de esperteza: numa situação conflitiva, tensa, alguém diz “Deixa quieto” significando para baixar a bola, deixar pra lá ou pra depois. Mas também pode carregar um aviso de vingança, uma ameaça silenciosa: “Deixa quieto que depois tem a volta”.
Bebaço
Aumentativo de “bêbado”, com esse sufixo que tanto apreciamos aqui no sul.
Forno alegre
Nome de Porto Alegre nos verões, especialmente naqueles marços arrasadores, em que calor e umidade dão as mãos para destruir as condições de boa civilidade. É termo do século 21, certamente.
Não te faz
Advertência contra quem está se fazendo. Ver “se fazer” (o mesmo que se fazer de morto).
Tri
Advérbio de uso universal em porto-alegrês, mas também adjetivo (algo pode ser “muito tri”). Em geral, quer dizer “muito”: um sorvete pode ser tri bom. Há teoria corrente de que o termo vem do “tri” do Brasil na Copa do México, em 1970.