Na última Feira do Livro, que não chamávamos de presencial porque ninguém imaginaria que pudesse ser de outro jeito, participei de uma sessão de autógrafos, uma experiência sempre boa quando o nosso ego anda cambaleante. Findos os abraços, a que todos se ofereciam porque ninguém se sentia contagioso, subi a ladeira em direção ao estacionamento, carregando duas frases que mexeram comigo.
Um senhor, que se apresentou como professor, perguntou: “O senhor se considera um escritor?”. E um adolescente de cara limpa e sorriso bonito se encabulou para dizer: “Eu quero ser como tu!”.
Ao primeiro respondi que ele não precisava se constranger em pensar que não, porque há uma forte corrente que considera o cronista como um fofoqueiro literário e, numa sociedade hierarquizada, como o soldado raso do exército de escritores. Ele respondeu que não era isso que ele queria dizer, mas era. E eu, preocupado em preservar a autoestima, vazei.
Há quem veja o cronista como um fofoqueiro literário e, numa sociedade hierarquizada, como o soldado raso do exército de escritores.
Alonguei a conversa com o jovem, pois prefiro plagiar a Zilda Arns, que recomendava investir nas crianças porque nós, os adultos, não temos solução. Além disso, havia uma curiosidade tão grande, que o garoto acelerava as palavras para perguntar o que precisava saber, entre pedidos de desculpas por tomar meu tempo que supunha tão precioso. A nossa relação fluiu quando confessei que eu só precisava de um saco da pipoca que enchia a praça do seu cheiro bom, e que naquela tarde não tinha mais nada para fazer.
Foi muito bom transmitir um estímulo ao prazer da leitura, que tem sido para mim um instrumento de devaneio, de prazer e de fuga, nesta vida tão atribulada que, por vocação, necessidade ou angústia, escolhi viver. Tratei de convencê-lo de que, de muito ler, estamos a um passo de escrever, e que às vezes a ideia surge de repente, da vontade súbita e incontrolável de recontar o que lemos. Havia uma doce cumplicidade no olho dele, e quando confessei que, como um leitor compulsivo, tenho tido muitas manhãs sonolentas, vitimadas por noites alongadas em leituras que não consegui interromper, ele lamentou que a mãe não estivesse ali para entender “que isso não acontecia só com ele”. Admiti que o compromisso, inicialmente assustador, de escrever uma crônica semanal trouxe um benefício que não imaginava: passei a ter um olhar mais atento ao meu redor. Trabalhando com gente, e muitas vezes com gente sofrida, a missão tinha ficado mais fácil.
– Posso te fazer uma última pergunta, agora que a pipoca terminou? Quando tu decidiste começar a escrever?
Disse que não lembrava, mas tinha uma inveja danada da confissão que o grande Fernando Sabino fizera num especial da TV, comemorativo aos seus 80 anos: na sua puberdade, ao relatar a um amigo uma história que havia lido em algum lugar, resolvera mudar-lhe o final para um outro que lhe parecera mais adequado. Nesse dia ele se defrontou com sua verdadeira vocação, a do contador de histórias. E que quem escreve, independentemente de seu talento, no fundo é isso: um contador de histórias.
Garantido um certo ar de intimidade, meio constrangido, ele retirou da sacola um segundo livro e perguntou se eu não me incomodava de dar mais um autógrafo. E escrevi: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história” (Hannah Arendt). Ele leu a frase mais de uma vez, agradeceu, ajeitou a mochila e caminhou rápido em direção à rua Sete de Setembro, sem olhar para trás. Talvez tenha mudado de ideia e decidido ser como a Hannah Arendt.