Fica cada vez mais claro, por meio do inquérito concluído dias atrás pela Polícia Federal, como a disputa interna nos quartéis brasileiros foi a linha de frente na qual se definiu que não haveria golpe de Estado. Sobretudo no Estado-Maior do Exército, força mais numerosa e decisiva. Ao contrário de outras ocasiões, o alto escalão das Forças Armadas desta vez decidiu não obstaculizar a posse do presidente eleito. No caso em questão, Luiz Inácio Lula da Silva.
O preço que o alto oficialato legalista pagou foi caro. Custou ofensas nas redes sociais e caras viradas entre os colegas de farda. Dos seis núcleos que propunham a ruptura da democracia, conforme a PF, um deles era responsável por incitar militares a aderirem ao golpe. Esse grupo, integrado também por "influencers" civis, montou redes de difamação.
Exemplos pinçados pela PF
Em 15 de novembro de 2022, o coronel Bernardo Romão Corrêa Neto (lotado no Comando Militar do Sul) encaminhou para o coronel Fabrício Bastos (do Centro de Inteligência do Exército) fotografias de cinco generais que se posicionaram contrários ao golpe de Estado. "Quem dera fossem (só) esses", desabafa.
Os alvos dos golpistas eram os generais Valério Stumpf (chefe do Estado-Maior do Exército), Tomás Paiva (comandante militar do Sudeste), Richard Nunes (comandante militar do Nordeste), André Luís Novaes Miranda (comandante militar do Leste) e Guido Amin Naves (chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia).
No dia seguinte, no Twitter, uma mensagem rapidamente se espalhou, com as frases: "Dos dezenoves generais, estes cinco canalhas não aceitam a proposta do povo. Querem que Lularapio assuma (...)".
A publicação ainda pedia para que as fotos dos generais fossem disseminadas na plataforma para serem expostos.
As redes também passaram a exibir uma montagem com os generais Thomaz, Richard e Stumpf usando capacetes em formato de melancia. Era uma tentativa de taxá-los de comunistas: verdes por fora (fardados), vermelhos por dentro...
Dias depois, Fabrício Bastos manda nova mensagem a Corrêa Neto, sugerindo atitudes mais drásticas: "Thomaz, Richard e Stumpf tinham que ser exonerados, presos, sei lá, qualquer merda, antes do GFG (general Gomes Freire) passar o Comando do EB (Exército)".
Um dos que propagou a insinuação de que os opositores ao golpe eram simpatizantes de Lula é o economista Paulo Figueiredo, celebrizado por ser neto do ex-presidente João Batista Figueiredo (o último do regime militar que vigorou de 1964 a 1985) e comentarista de TV alinhado com a extrema direita. Ele é um dos indiciados pela PF por tentativa de golpe de Estado.
Muitas críticas eram encabeçadas pelo próprio candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro, o general Walter Braga Netto (ex-ministro da Defesa). Em mensagens reveladas pela operação da PF, ele incentiva assédio nas redes sociais ao comandante da Aeronáutica, contrário ao golpe.
"Senta o pau no Baptista Júnior (comandante da Aeronáutica). Povo sofrendo, arbitrariedades sendo feitas e ele fechado nas mordomias. negociando favores. Traidor da Pátria. Daí para frente. Inferniza a vida dele e da família", escreveu Braga Netto ao ex-capitão do Exército Ailton Barros. "Elogia almirante Almir Garnier (comandante da Marinha, que teria concordado com o golpe) e ferra com o BJ (Baptista Júnior)", continuou.
Outro indiciado por tentativa de golpe de Estado é o coronel da reserva Laércio Vergílio, ex-Forças Especiais. Ele enviou diversas mensagens ao comandante do Exército, general Freire Gomes (de quem foi colega), apelando para que rompesse a ordem democrática. Diálogo interceptado pela PF mostra que, em 14 de dezembro de 2022 (poucos dias antes de Bolsonaro deixar o cargo), o coronel intimou seu próprio comandante, general Freire Gomes:
"Ou você toma uma decisão ou pede pra sair, é uma questão de 'Foro íntimo' seu. Conheço seu caráter, seu profissionalismo, mas você vai amargar essa mácula na sua reputação e passar para a História como o 'Covarde TRAIDOR DA PÁTRIA'? Não tem outra leitura, infelizmente, meu amigo!"
Freire Gomes não aceitou a pressão. Conforme diversos relatos colhidos pela PF, o comandante do Exército inclusive ameaçou de prisão Bolsonaro, caso ele decretasse Estado de Sítio e não entregasse o cargo para o eleito, Lula.
Tanto Freire Gomes e Baptista Júnior como os cinco generais chamados de "melancias" não se pronunciaram a respeito do inquérito da PF. Dos cinco, Tomás virou o atual comandante do Exército e Richard é o chefe do Estado-Maior.