
Morreu Mario Vargas Llosa. E com ele, um pouco da coragem que falta à política latino-americana — e à brasileira, especialmente — de mudar de ideia sem pedir desculpa. De pensar sem pedir permissão. De romper com o próprio grupo quando o grupo erra, e seguir de pé. Morreu o escritor, é verdade. Mas mais raro que a sua literatura foi o exemplo de lucidez que deixou. A lucidez de quem sabe que inteligência não combina com fidelidade cega.
O peruano que quase foi presidente começou a vida política apaixonado por Fidel Castro e terminou votando na filha de Fujimori. Não por conveniência, mas por coerência. Quando viu a liberdade sendo esmagada em nome da revolução, recuou. Quando percebeu que o populismo de esquerda não era diferente da tirania de direita, rompeu. E quando o mundo esperava silêncio, ele escreveu. Denunciou, pensou alto, apanhou de todos os lados — e seguiu pensando.
Aqui no Brasil, pensar é quase um pecado. A militância exige entrega total. O bolsonarismo trata qualquer nuance como traição. Já o petismo reage a toda crítica como se fosse obra de sabotadores infiltrados. Lula voltou ao poder cercado por gente que reescreve sua história como se fosse um épico sem falhas — e ataca até quem apenas aponta problemas óbvios, como a desastrosa comunicação do governo. Do outro lado, basta você piscar fora do compasso e já vira "comunista infiltrado". Dois extremos alimentados pela mesma fome de culto e intolerância.
Vargas Llosa não suportava cultos. Nem os de farda, nem os de estrela vermelha. Por isso incomodou tanto. Foi abandonado pela esquerda quando disse que não dava pra defender liberdade e ditadura ao mesmo tempo. E foi rejeitado pela direita quando apontou os riscos do autoritarismo de figuras como Trump e Bolsonaro. Numa época em que coerência virou defeito e independência de pensamento virou motivo de cancelamento, ele lembrava que a única lealdade que vale é com os princípios.
Talvez por isso seja tão importante lembrar dele agora. Quando tanta gente tem medo de pensar fora da cartilha, Vargas Llosa nos deixa o recado de que mudar de opinião é sinal de maturidade — e não de fraqueza. Que romper com a própria bolha pode doer, mas é o único caminho para a honestidade intelectual. E que não há literatura mais perigosa do que aquela escrita por quem repete sem refletir.
Ele nos ensinou que há uma diferença entre ser militante e ser fanático. E que, às vezes, o maior ato de resistência é continuar pensando. Por conta própria. Mesmo quando tudo ao redor pede o contrário.