No dia 29 de março de 2017, a suprema corte venezuelana se apoiou em um pretexto banal para rasgar a fantasia e assumir de vez o que já estava ficando difícil de dissimular: o conluio do Judiciário com Executivo, sob o comando de Nicolás Maduro. Vinha-se percebendo, havia muito tempo, que as decisões do Supremo Tribunal de Justicia de la República Bolivariana de Venezuela serviam de escudo para as medidas totalitárias de Maduro e, ao mesmo tempo, de espada sobre a cabeça dos vários grupos oposicionistas. Mas era um processo gradual, com um mínimo de escrúpulos, para não dar tanto na vista. Até que a noite desceu pesada sobre Caracas naquele finzinho de março: alegando sentir-se “desacatada”, a suprema corte venezuelana decidiu fechar o parlamento e assumir, ela mesma, as funções dos deputados. E ponto final.
“Adverte-se”, dizia a decisão do STF deles, “que, enquanto persistir a situação de desacato e de invalidade das atuações da Assembleia Nacional, esta Sala Constitucional garantirá que as competências parlamentares sejam exercidas diretamente por esta sala (...) para velar pelo Estado de Direito”. Parênteses: ao transcrever a declaração do STJ chavista, lembrei agora da carta que a USP elaborou supostamente para defender a democracia e o Estado de direito, cujo texto não cita, uma mísera vez, a palavra “liberdade”.
Bem, o fato é que a pressão internacional obrigou a corte a voltar atrás em sua decisão, mas o regime não aceitou ficar sob o controle de um parlamento com ampla maioria das cadeiras (dois terços) nas mãos da oposição. E tratou de chamar uma eleição “especial”, com todas as aspas possíveis, para criar uma assembleia constituinte. A manobra tornou vazio, decorativo, o parlamento que havia sido eleito apenas um ano antes, em janeiro de 2016, em um pleito no qual o povo venezuelano, empobrecido e revoltado com o que já era a maior inflação do mundo, impusera a Maduro uma derrota padrão 7 a 1, digamos assim.
Eis, então, que a Venezuela se tornou um país em que os três poderes atuam como um único grupo de comando. A suprema corte obedece às vontades do chefe do poder Executivo, e o parlamento colaboracionista trata de não criar problemas e colher as vantagens de fazer parte do consórcio bolivariano. A oposição está sufocada. E os militares... Bem, na Venezuela os militares decidiram não ouvir o clamor popular para garantir o cumprimento da Constituição. E seus chefes têm sido recompensados por se manterem inertes sobre um dos maiores arsenais de guerra da região enquanto o povo vive à míngua, sem pão e sem liberdade, e a Venezuela se despede melancolicamente da posição que ostentou, poucas décadas atrás, como uma das mais prósperas economias do mundo.
Qualquer semelhança com a tétrica projeção de um Brasil governado por uma aliança espúria entre Executivo e Judiciário, e um parlamento de joelhos, não é mera coincidência. É o que temem as milhares de famílias de couro curtido por mais de 50 dias e madrugadas de sol, chuva, vento e esperança.
Esperança de restabelecimento da ordem democrática e constitucional.