Mark Zuckerberg ainda estava na barriga da mãe quando a Apple marcou época com o anúncio de um novo computador. Era o começo do ano de 1984 e alguém deve ter pensado que seria uma grande sacada contrapor o futuro cheio de possibilidades inaugurado pela era dos computadores pessoais à distopia totalitária imaginada por George Orwell em 1949. Ridley Scott, criador de Blade Runner (1982), foi chamado para dirigir.
Em uma tela gigantesca, vemos um sujeito que evoca a imagem do Big Brother dirigindo-se a uma plateia apática e cinzenta: “Hoje, celebramos o primeiro glorioso aniversário das Diretivas de Purificação de Informações. Criamos um jardim de pura ideologia onde cada trabalhador pode florescer, protegido das pragas que transmitem pensamentos contraditórios”. O discurso é interrompido quando uma mulher lança um martelo em direção ao orador, explodindo a tela e rompendo o transe coletivo. A seguir, uma voz em off conecta a cena com o produto anunciado: "Em 24 de janeiro, a Apple apresentará o Macintosh. E você verá por que 1984 não será como 1984".
Corta para 2025. O feto na barriga de Kristen Zuckerberg é hoje um bilionário de 40 anos. A empresa que ele fundou é tão poderosa e ubíqua que qualquer pronunciamento seu soa como o discurso oficial do presidente — não eleito — do mundo. Ao anunciar uma série de medidas para acabar com o programa de checagem de fatos da Meta, Zuckerberg não apenas abraçou a retórica trumpista com o entusiasmo de um cristão recém-convertido como deixou claro que está disposto a agir como presidente do mundo sempre que for bom para os negócios. Fatos? Cada um que escolha os seus.
“O mito é o nada que é tudo”, nos lembra Fernando Pessoa. A mitologia original das big techs sempre foi a da liberdade de expressão. Um mundo em que todas as vozes pudessem ser ouvidas seria um mundo sem regimes totalitários, sem manipulação, sem Big Brothers. Faltou combinar com os russos — e com o resto da Humanidade. O que se viu, com o passar dos anos, foram as redes sociais sendo transformadas em lucrativos cercadinhos em que a ração de realidade de cada um é distribuída conforme as decisões opacas de um algoritmo — a versão millennial do Big Brother, pode-se dizer. Ao associar-se a uma ideologia que censura livros, nega a ciência e tem zero interesse em proteger a diversidade de ideias ou a democracia, usando a defesa da “liberdade de expressão” como escudo, Zuckerberg acabou dando um exemplo prático de “duplipensar” (outra genial criação orwelliana): a arte de conciliar o inconciliável.