
Não há nada mais familiar do que livro de receitas. Não há nenhuma prova maior de que aquela família foi feliz.
É o tesouro dos sabores caseiros. O esconderijo dos arrebatamentos. O testamento de risos e suspiros.
Nem precisa ser um livro, pode ser um caderninho escolar, com as folhas manchadas de farinha e ovos, com a caligrafia às pressas, onde você anota a quantidade dos ingredientes e a forma de preparo dos pratos que deram certo no convívio.
São fórmulas secretas cobiçadas ardentemente pelos filhos e netos.
Você faz chantagem com elas pelo resto da vida. Você promete revelá-las quando julgar que a pessoa merece ou está pronta para assumir a alquimia. Você possui uma carta na manga para seguir vivo na posteridade.
Quem tem livro de receitas não entrega seus truques facilmente. Não sai repartindo os detalhes decisivos do manjar, o diferencial dos banquetes, os temperos improváveis empregados.
É alguém que acalenta a privacidade de sua cozinha, e gera suspense com seus achados. Um abnegado do fogão, um sacerdote dos molhos, com o sigilo sacramental da confissão inviolável.
Não é fofoqueiro de sua magia, dedicando a sua história a preservar os seus alfarrábios e se mostrar presença obrigatória nos almoços e jantares comemorativos.
Contar com uma especialidade incomparável nas panelas é garantia da frequência nos álbuns de fotografias. Você jamais ficará de fora das grandes festas, jamais será penetra.
Os dotes culinários se transformam em pré-requisito para ser benquisto pela família e sempre convidado, já que só você sabe o ponto daquela mousse de chocolate com furinhos exatos, daquela paelha de ferver o mar, daquela galinhada que dá água na boca.
Não passar adiante é se proteger dos concorrentes e da possibilidade de um dia ser dispensado.
Muitos casamentos permaneceram de pé somente pela obra gastronômica sagrada.
O que eu aprendi tardiamente é que não basta receber a receita. É necessário praticar com o dono dela.
Minha avó expôs, no fim da sua existência, no leito de morte, o rascunho da sua sopa de calandre.
Caldo:
- Frango (peito, pescoço, miúdos)
- Sal a gosto
- 1 cebola picada
- 2 dentes de alho picado
- Tempero verde a gosto
- 1 cenoura inteira
Canederli:
- 6 xícaras de chá de pão francês “dormido” ralado
- 250 mg de salame colonial picado bem fino
- 100 g de queijo colonial picado bem fino
- 100 g de queijo parmesão ralado
- 6 ovos batidos
- Tempero verde a gosto
- Sal a gosto
Farinha para dar liga (em torno de 5 colheres de sopa), a depender da umidade do pão
Pensávamos que manteríamos o hábito da famosa sopa de bolas no inverno.
Ninguém de casa, geração por geração, conseguiu repetir. Todos fracassaram, inclusive eu.
Se pudéssemos ressuscitar a nona, perguntaríamos de cara, antes de expressar a nossa incurável saudade: onde erramos?
É que não adianta apenas herdar o escrito, é fundamental pagar o preço do treinamento. Existe algo feito de olho que não vai para o papel.