
Não tenho medo da morte, mas do esquecimento.
O que aconteceu com Gene Hackman, 95 anos, mexeu comigo. Abalou as minhas estruturas psicológicas.
O grande ator de mais de 80 filmes, dois Oscars no currículo, estrela versátil de Bonnie e Clyde, Operação França, A Conversação e Mississipi em Chamas, o memorável Lex Luthor de Superman, requisitado pela voz tonitruante e pelo temperamento persuasivo, firme e impenetrável, pereceu no mais completo ostracismo.
Apesar da fortuna de 80 milhões de dólares, da glória, do seu nome imortalizado em Hollywood, amargou um fim secreto e anônimo.
Foi encontrado em 26 de fevereiro em sua casa, no Novo México, ao lado de sua esposa, Betsy Arakawa.
Ele faleceu em 17 de fevereiro, devido a doença cardiovascular.
Ou seja, de 17 de fevereiro à descoberta de seu paradeiro em 26 de fevereiro pelas autoridades, passou uma semana sem ser procurado por nenhum amigo, nenhum parente. Nenhum dos seus três filhos. Ninguém se interessava por ele, ninguém queria saber como estava.
Os afetos desapareceram para ele, como costuma ocorrer na velhice e na doença.
Um homem de rosto amplamente conhecido pelo público se viu, de repente, um mendigo na intimidade.
Não sobrou nenhum espectador para aquele que arrebatava multidões ao cinema, para o derradeiro capítulo de seu olhar.
A campainha de sua residência não soou, o seu telefone não apitou em nenhum momento. Estava longe do seu auge, distante da rotina de intensas solicitações, permeada de entrevistas, reuniões, jantares, festas, bajulação.
Ele sofria de Alzheimer em estágio avançado. Só contava com a sua esposa para cuidá-lo. E a pianista Betsy, 65 anos, havia sido pega desprevenida por uma infecção pulmonar letal, em 11 de fevereiro, pela poeira invisível de hantavírus, causada pela exposição a roedores infectados. Ele nunca imaginaria que sua companheira, três décadas mais jovem, partiria antes dele.
Ou seja, de 11 de fevereiro, quando sua esposa faleceu, até 17 de fevereiro, quando Gene deixou de respirar, ele atravessou uma semana inteira perambulando pelo museu de sua existência, agonizando lentamente, sem remédios, sem comida, sem entender quem era. Viveu seus últimos dias com a esposa tombada no chão, não conseguiu socorrê-la ou providenciar ajuda. É bem possível que nem tenha reparado que estava morta. É bem provável que tenha gritado por ela várias vezes e se cansado de chamar. Seu cachorro Xena tampouco resistiu à inanição e se juntou ao casal de vítimas da indiferença.
Ele tinha tudo e nada ao mesmo tempo. Tinha uma mansão com dezenas de quartos vazios e nenhuma alma por perto para ampará-lo nas horinhas do pesar. Escolheu permanecer afastado dos holofotes, inventou sua ilha de reclusão, sua fortaleza de conforto e, para manter a privacidade, dispensou cuidadores, enfermeiros e empregados. Talvez as pessoas próximas pensassem que ele não precisava de coisa alguma, tamanha a sua prosperidade e sucesso.
Ficou preso no cofre que ele criou, levando consigo a senha até o coração parar de bater.
Não foi o Alzheimer de Gene Hackman que desencadeou o seu triste óbito, mas o Alzheimer do mundo ao redor dele. Não morreu porque não lembrava mais de si, mas porque todos não lembravam mais dele.
Por isso, se algum amigo ou familiar não dá notícias, busque-o. Não conclua que ele está atarefado ou ocupado demais, ainda que ele deseje não ser incomodado.
O abandono é a morte em vida.