
Quando foi a última vez que você adquiriu colchão?
Certamente não lembra. Apesar da duração recomendada de 7 a 10 anos, o colchão tem uma longevidade involuntária, porque você simplesmente esquece que ele existe. Vejo pacatos cidadãos completando bodas de prata com o seu leito.
É aquele casamento que não acaba, pois você se acostumou a estar casado.
Colchão é um bem de consumo caracterizado pela sua extraordinária sobrevivência, um pouco por descaso, um pouco por apego.
Supera o tempo da geladeira, do fogão, da máquina de lavar.
Deveríamos ser menos fiéis ao seu uso. Trocar com maior periodicidade.
Conservo uma estranha mania de visitar loja de colchões. Às vezes nem é para levar algum, mas para olhar as novidades. Aquele lugar minimalista me garante paz de espírito.
Eu me encanto com a sinceridade, com a objetividade do ambiente.
Os colchões estão nus. As camas não estão vestidas. As lojas não colocam roupa no produto. Não arrumam o quarto.
Não nos provocam gatilhos do consumismo. Não desenvolvem o tom para segundas intenções, para vender o que não é necessário, o que não vem sendo procurado.
Só mantêm o colchão limpo, e mais nada.
Que o cliente imagine o resto com os seus gostos pessoais.
É uma antipropaganda que funciona: menos é mais. Até porque você não está lá para comprar enxoval ou acessórios.
Não é abduzido por distrações alheias ao material comercializado. Não há como se perder em futilidades e desejos extemporâneos.
Inclusive, o despojamento é uma forma para o interessado não capotar de cansaço ao experimentar diferentes tipos. Se a cama estivesse feita, fofa e quentinha, seria bem possível cochilar ali.
Outro detalhe me impressiona: os vendedores atendem de avental branco.
Não são médicos ou enfermeiros, porém o jaleco traz confiança, como se fossem cientistas do sono. E o sono não deixa de ser uma ciência.
A indumentária manda uma mensagem para o nosso inconsciente de que o local é higiênico, controlado.
No fundo, eu sei o motivo de frequentar as lojas. Por puro trauma da infância, recalque de experiências malfadadas da minha geração. Eu me maravilho com a tecnologia atual de tanto que sofri antes.
Minhas vértebras nunca poderiam ser linhas retas. Minha postura curvada paga o preço do meu passado.
No interior, preenchia-se o colchão com palha de milho. A sensação era dormir no mato. Ao despertar, você tinha que espalhar o material, remexer o conteúdo, para não concentrá-lo somente num lado com o seu próprio peso e não terminar em contato direto com as tábuas.
No inverno, como forrávamos os edredons com penas de aves (galinha, pato, ganso), havia grandes chances de ser soterrados. E afundar ainda mais na dureza da superfície.
Também recorríamos aos colchões campeiros de crina e lã, maciços. Iam se achatando progressivamente e, sem perceber, você naufragava num rochedo.
Depois, conhecemos os colchões com mola, inspiradores para pular em cima com os irmãos e ganhar impulso numa guerra de travesseiros, porém péssimos para nos deitarmos. As varetas se desgarravam da armação e cutucavam as costas.
Em seguida, surgiu a modernidade da cama gaita com cordinha no meio, para ocupar menos espaço no quarto. Não se tratava nem de sofá, nem de cama. Você acordava mais do que com vincos no rosto: com cicatrizes. Esparadrapos de tiras reforçavam a lona, para evitar que se rasgasse, e marcavam o seu corpo para sempre.
Quem é antigo, pré-histórico como eu, já desmaiou em maus lençóis e estrados.