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As crianças não colecionam mais como antigamente. Usam a maior parte de sua atenção para a virtualidade, para o celular, games e redes sociais. No máximo, aventuram-se a compilar objetos sobre celebridades da música ou do cinema, no culto a uma personalidade, seja ela real (um artista), seja ela fictícia (um personagem). É uma idolatria que incide sobre uma idade, e logo passa.
Existem ainda os álbuns de figurinha, existem ainda as bonecas e bonecos, geralmente derivados de desenhos, séries e animações. Mas são fases de adoração, não coleções.
Não se experimentam o silêncio e a disciplina de dar sequência a um projeto, de elaborar uma paixão em segredo.
Na minha infância, o melhor passatempo era colecionar. Qualquer menina ou menino alentava a fixação por um item. Escolhia um assunto para se transformar em especialista.
Poderia ser papel de carta, perfumado e colorido. Poderiam ser selos, retirados das correspondências ou adquiridos em bancas de revista e filatelia. Poderiam ser notas ou moedas, vendidas na rodoviária em cartelas de diferentes países.
O universo do guardador ia muito além. Tomava-se gosto por um material específico, neutro, sem vínculo nenhum com uma tendência, ou com uma moda, ou mesmo com alguém famoso.
Deixava-se um legado desde pequeno, formava-se uma herança. Predominava uma outra noção de posteridade, de ter algo para si, de fazer sentido numa vida anônima, de juntar uma poupança com um hábito.
Você se tornava rico de uma particularidade, pesquisador de um produto. Cuidava de algo como se fosse seu filho, num exercício precoce de autonomia.
O consumismo não ditava as regras. Havia coleções estranhas, que dispensavam dinheiro e dependiam apenas do ato de apanhar lixo na rua ou catar embalagens descartadas pelos demais, como carteiras de cigarro, caixinhas de fósforos, tampinhas de refrigerante, palitos de picolé, embrulhos de bala.
Tinha quem decorava suas roupas com broches e bottons.
Tinha quem angariava símbolos dos adultos, como bolachas de chopp e cartões de visita.
Tinha quem ocupava a geladeira com ímãs de comércio.
Tinha quem espiava o cotidiano pela fechadura da porta, e conservava chaveiros de todos os tipos e temas.
Tinha quem buscava o oceano em veleiros nas garrafas.
Tinha quem ansiava pelos céus montando aeromodelos com cola e paciência, produzindo réplicas de caças de guerra.
Tinha quem se dedicava a cobrir paredes e superfícies espelhadas, acumulando adesivos e flâmulas.
Os tesouros da existência se resumiam a latinhas, pneus, jornais.
Com uma latinha cheia de água, um talo de mamona, sabão em pó e canudinho, gerávamos bolhinhas de sabão. Com um pneu, cordas e uma árvore, inventávamos um balanço. Com restos de jornais molhados, criávamos bonecos.
A alegria se mostrava um filme de baixo orçamento.
Não sobrava espaço para o tédio, a procrastinação.
As brincadeiras aconteciam com barquinhos de papel na chuva, que deslizavam de nossas mãos para a correnteza do meio-fio das calçadas.
Ou com aviõezinhos meticulosamente dobrados, feitos a partir de folhas dos cadernos — arremessávamos nossas efêmeras criações do alto das janelas, contando os segundos que duravam planando.
Desenvolvíamos nossos próprios presentes e atividades.
Bolitas, botões, pandorgas e bolas de plástico completavam nossos monumentos de recreação.
Ora aprofundávamos a solidão do autoconhecimento com as coleções pessoais, ora cultivávamos a solidariedade, interagindo com os colegas com pega-pega, mãe da rua, esconde-esconde, passa-anel, balança-caixão, morto-vivo, batata quente, adoleta, cobra-cega, nós quatro, pula-sela, cama de gato, polícia e ladrão.
A responsabilidade nascia do zelo. A criatividade surgia da amizade.