Jamais modifiquei o meu número telefônico, mesmo quando morei em outras capitais do país. Nunca tive coragem. Nunca tive intenção de transferi-lo.
O advogado do diabo pode desmerecer a minha decisão e dizer que mantive o número para não ter trabalho de trocar o chip, para evitar burocracia, já que contamos atualmente com as facilidades geográficas do WhatsApp: você liga de qualquer lugar dentro do aplicativo sem custo nenhum.
Antes, exigia-se a alteração para o DDD de nossa residência se quiséssemos pagar ligações locais. Hoje não é mais necessário.
Mas não foi preguiça de minha parte, há um fundo emocional no meu comportamento.
O frete vai até certo ponto. Algo sobrevive. Algo resta intocado. Algo revela de onde vim e quem eu sou. O telefone é o meu cofre do pampa.
Não me interessa parecer nativo de um segundo local, apresentar-me entrosado numa identidade diferente ou me envaidecer do cosmopolitismo.
Orgulho-me de minhas raízes. As minhas raízes são as minhas asas. Só vai longe na vida quem tem um paradeiro para voltar.
E isso não acontece somente comigo. Há gaúchos no Japão ou nos Estados Unidos causando estranheza em seus colegas de trabalho estrangeiros pela combinação gaudéria dos dígitos de seu contato.
São bairristas que não abdicam do vínculo. Sempre estarão respondendo aos desavisados que o seu código é do Rio Grande do Sul.
Não deixam de ser embaixadores informais da nossa terra, da nossa condição, protegendo essa cidadania sólida do rincão contra as ameaças do mundo líquido.
A verdade é que podemos nos mudar para longe, podemos nos deslocar para paragens remotas, podemos atravessar oceanos, podemos aceitar desafios profissionais em novas culturas e idiomas, mas, por saudade imorredoura e incurável, não dispensamos o código de área do nosso telefone. Não renunciamos o prefixo do nosso torrão natal.
Conservamos o mesmo número telefônico como se ainda morássemos em nossa cidade. Para facilitar o acesso dos nossos familiares. Para nos igualar aos amigos.
O endereço da conversa é inalterável. O endereço da voz. O endereço da falta.
Quem morava em Porto Alegre permanece com o 51. Quem morava em Pelotas ou Rio Grande permanece com o 53. Quem morava em Caxias permanece com o 54. Quem morava em Alegrete permanece com o 55.
É o oposto do passaporte. Se este é feito para viajar, o prefixo é feito para ficar.
Trata-se de uma segunda via da certidão de nascimento, uma homenagem aos costumes, ao chimarrão, ao nosso time de futebol, ao nosso jeito tão singular de nos comunicar.
Os pais também se mostram menos receosos com o telefone igual. Acreditam que logo iremos regressar. Que é somente uma fase da nossa trajetória. Não sofrem com uma possível ruptura e transferência definitiva de lar. É uma esperança concedida a eles. Assim entendem que nossa estada é provisória, que nosso trabalho distante é temporário.
Não se muda o sotaque do coração.