Em meio às tentativas de anistiar os condenados pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, outro casuísmo toma forma na Câmara dos Deputados. Trata-se de um projeto de autoria do deputado gaúcho Bibo Nunes (PL-RS) para reduzir os efeitos da Lei da Ficha Limpa. O objetivo é evidente: criar um atalho jurídico para recolocar Jair Bolsonaro na disputa eleitoral de 2026, diminuindo o período de inelegibilidade previsto na legislação.
Como se sabe, o ex-presidente hoje está inelegível em razão de condenações em dois processos distintos. A primeira, proferida em junho de 2023, foi por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada. A segunda, datada de outubro do mesmo ano, também é por abuso de poder político e econômico, desta vez nas comemorações do Bicentenário da Independência. As sentenças impedem Bolsonaro de disputar eleições até 2030, obstáculo que seus aliados querem remover por meio da desfiguração da Lei da Ficha Limpa. Por tabela, a alteração favoreceria outras figuras públicas com ficha suja, como os deputados federais Marcelo Crivella (Republicanos/RJ), Carla Zambelli (PL/SP) e Valdevan Noventa (PL/SE).
Preocupado em afastar críticas de favorecimento a corruptos, o Partido Liberal (PL), a sigla de Bolsonaro, estuda uma saída que, se adotada, vai escancarar ainda mais o objetivo de favorecê-lo. Atualmente, existem três razões para alguém ficar impedido de disputar eleições: cometer crime eleitoral, condenação em processo criminal e cassação de mandato. Como Bolsonaro foi condenado na esfera eleitoral, o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Filipe Barros (PL/PR), quer diminuir a ilegibilidade para dois anos apenas para os crimes políticos. Dessa forma, segundo ele, criminosos e corruptos continuariam longe das urnas por oito anos.
Se levar a ideia adiante, a Câmara poderá dilacerar uma regra que nasceu em 2010 como resultado de uma grande mobilização nacional. Nesse país de memória curta, muita gente nem lembra que a Lei da Ficha Limpa foi fruto da coleta de 1,6 milhão de assinaturas de cidadãos preocupados em moralizar o processo eleitoral. É esse patrimônio moral e ético da sociedade brasileira que corre o risco de mutilação, em iniciativa com claro desvio de finalidade. Um casuísmo legislativo que reforça a percepção de que as leis no Brasil são maleáveis de acordo com interesses políticos de plantão.