Em 16 de novembro de 2024, Deise Moura dos Anjos foi passar o final de semana com o marido, Diego, e o filho, de nove anos, na casa de praia da sogra, Zeli Teresinha dos Anjos, em Arroio do Sal. Alguns dias depois, já em casa, em Nova Santa Rita, Deise reclamou da atenção dedicada por Diego à própria mãe:
— Tu falou com a tua mãe mais do que falou comigo durante todo o tempo que a gente tá junto.
Casados desde 2004, os dois começaram a discutir, trocando ofensas familiares. Diego se comparou ao pai de Deise, morto em 2020 por cirrose alcoólica, e disse que, assim como ele, sempre foi mais feliz da porta para fora. Deise reagiu afirmando que a vida deles virou um inferno desde que Zeli invadiu a privacidade do casal, sacando R$ 600 da conta-corrente do marido dois meses após o casamento.
No dia 18, ainda durante a visita na casa da praia, Deise fez 17 buscas no celular, procurando seis vezes por “arsênico veneno”, outras seis por “veneno para o coração”, e cinco por “veneno para humano”. Em 23 de dezembro, seis parentes de Diego foram hospitalizados após comer um bolo preparado por Zeli com farinha contaminada por 65 gramas de arsênico.
O que era para ser um café da tarde em família na antevéspera do Natal se tornou um flagelo coletivo na primeira mordida. O gosto apimentado logo adormeceu a boca e as pessoas desfaleceram, vomitando no chão, no box do banheiro e no tanque. Três delas morreram por choque pós-intoxicação alimentar. Entre os sobreviventes, Zeli foi a que mais padeceu no hospital, recebendo alta somente em 10 de janeiro, após 18 dias internada, 14 deles na UTI.
Aos 42 anos, Deise está agora presa sozinha numa cela de seis metros quadrados, no Presídio Feminino de Torres, apontada pela polícia como autora de quatro homicídios duplamente qualificados. Além das mortes ocorridas em dezembro, ela é suspeita de envenenar o pai de Diego, falecido em setembro após comer bananas com leite em pó levadas pela nora. Recolhido na casa da família na praia, Diego procurou um advogado na semana passada, pedindo auxílio para ingressar com pedido de separação.
Relacionamento começou em bailes de CTG
Deise nasceu em Canoas, em 6 de setembro de 1982. Filha mais nova de um pedreiro e uma dona de casa, conheceu Diego em bailes de CTG. Começaram a namorar em 27 de julho de 2001, ela aos 19 anos e ele com 17. Três anos depois, casaram-se.
O planejamento do matrimônio inaugurou as turbulências com a família do futuro marido. Deise queria casar na Igreja São Luiz Gonzaga, enquanto Diego preferia a Capela La Salle, do outro lado da linha do trem. Ela aquiesceu e pagou R$ 200 para reservar a data na La Salle.
Mas uma prima de Diego, Tatiana Silva dos Anjos, invocou o direito de casar primeiro no local por ser mais velha. Irritada com a atitude, Deise organizou uma rápida celebração religiosa no mesmo local da festa, um salão no segundo andar de uma galeteria de Canoas. No ano seguinte, ao receberem o convite de casamento da prima, Diego ouviu um ultimato de Deise:
— Ou tu fica do lado dela ou do meu.
Ele devolveu o convite, não foi à festa e rompeu relações com Tatiana. Desde então, quebrou uma tradição e nunca mais passou o Natal com a prima. As festas familiares com a presença de Tatiana ocorriam sempre dia 24. As com Diego, dia 25. Duas décadas depois, Tatiana morreu na manhã da última véspera de Natal. Segunda pessoa a sucumbir ao bolo envenenado, tinha 384 mil microgramas de arsênio por litro no estômago, quantia 11 mil vezes acima de uma eventual contaminação acidental. A mãe dela, Neuza dos Anjos, morreu poucas horas depois. O filho, de 10 anos, recebeu alta após 10 dias hospitalizado.
Tia de Tatiana, Maida Berenice Flores da Silva foi a primeira a morrer, às 4h daquele 24 de dezembro.
A vida de Deise e Diego longe das famílias
Em 2013, Deise e Diego foram morar em Catalão, no interior de Goiás. Administrador de empresas, ele foi transferido após receber uma promoção na multinacional de máquinas agrícolas na qual trabalhava havia cinco anos. A vida longe da família foi um recomeço para o casal após uma separação no ano anterior.
Em ocorrência registrada na polícia, Deise relatou ter sido xingada pelo marido na frente da mãe dela. Diego pediu à mulher que saísse de casa e ofereceu R$ 25 mil em troca da parte dela no imóvel. Abrigada na casa da irmã, Deise reatou meses depois, após apelo do marido.
Em Catalão, Deise trabalhou como auxiliar de contabilidade no maior escritório do ramo na cidade. Contratada pessoalmente pelo dono em 20 de maio de 2014, era organizada, simpática e demonstrava interesse em aprender. Em julho do ano seguinte, entrou em licença-maternidade e voltou para Canoas.
— Ela queria estar próxima da família. Tanto que, depois que o filho nasceu, ela ligou pedindo demissão. Nem voltou — conta o ex-patrão.
Em 2017, em nova transferência de Diego na empresa, eles foram morar em Indaiatuba (SP). A distância afetava Deise, que mais tarde desenvolveria depressão. Os telefonemas para casa geralmente terminavam em lágrimas, sobretudo pela saudade que o pai nutria da caçula.
A volta para o RS
De volta ao Estado em 2019, a família se mudou no ano seguinte para Nova Santa Rita, onde, no início da década, havia comprado um terreno de 775 metros quadrados, sobre o qual assentaram uma casa ampla com piscina. A pandemia afastou mais uma vez Diego e Deise de seus pais, e logo haveria uma forte ruptura entre nora e sogra. Em função do isolamento social, Deise orientou as famílias a não comparecerem à formatura do filho na pré-escola. Revoltada por não poder tirar uma foto ao lado do neto, Zeli bloqueou Deise no WhatsApp. Elas ficaram dois anos praticamente sem se falar. Quando ensaiaram uma reaproximação, os ressentimentos afloraram de novo. Durante visita de Zeli e do marido a Nova Santa Rita, Deise disse que a casa estava de portas abertas à reconciliação.
— A situação piorou ainda mais. A Zeli chegou gritando, dizendo que todos erraram. Eu disse que era o momento de todos pedirem perdão. Porém a Zeli falou que ela e o Paulo não pediriam perdão — contou Deise em depoimento.
Pouco tempo antes, Deise também havia brigado com a professora do filho. O menino cursava o segundo ano do Ensino Fundamental em uma das mais cobiçadas escolas da cidade. Ao insistir com a direção de outro colégio por uma vaga para o filho, Deise enviava vídeos e fotos do garoto rezando em um altar de casa por uma transferência, depois consumada.
Nessa época, Deise trabalhava das 13h30min às 18h em um escritório de advocacia em Canoas. Obcecada por limpeza, passava limpando o ambiente e exibia sinais de depressão, sobretudo nas queixas cotidianas de que o marido pouco falava com ela e que o filho sentia saudade da avó Zeli.
Deise pediu demissão no final de 2023, quando o movimento escasseou e ela estava prestes a se formar em gestão financeira por uma universidade de Canoas. A partir de então, dedicou-se a cuidar da casa e da rotina do filho enquanto dividia com a irmã mais velha o trato da mãe, que tem problemas de locomoção.
Reconciliação e intoxicações em série
Na enchente de maio, Deise ficou ilhada em casa, mas tão logo a rua secou, reconciliou-se com os sogros, abrigando-os durante quatro noites. Fez compras na internet para ajudar os amigos e instalou uma bomba na piscina para distribuir água aos vizinhos. Em setembro, quando o pai de Diego morreu de infecção intestinal, ela procurou um advogado, inconformada com a impossibilidade de cremar o sogro já que a certidão de óbito não havia sido assinada por dois médicos. Alertada de que uma decisão judicial demoraria dias, desistiu.
Em outubro, foi Diego quem teve uma intoxicação. “Começou um tratamento para o estômago e agora, depois de oito dias, não para de ter febre. Ontem levei no plantão. Deu infecção nos exames de sangue”, relatou Deise a um amigo. Dois meses depois, o marido novamente passou mal. Conforme depoimento de uma testemunha, ele sentiu o desconforto após tomar suco de manga oferecido pela esposa.
Para a Polícia Civil, Deise estaria tentando envenenar o marido nesse episódio, e atingiu sem querer o próprio filho. Ao perceber que o menino também ingeriu o suco, ela o teria forçado a vomitar. Em 17 de dezembro, Deise postou uma foto do garoto tomando soro em um pronto-atendimento, acompanhada de pedido por orações. “Virose, muito vômito”, explicou a quem perguntou o que havia ocorrido.
Interrogada durante quase seis horas, Deise dispensou advogado e respondeu a todas as perguntas da polícia. Admitiu os conflitos com a família do marido, mas negou ter cometido qualquer crime. Procurado, o advogado de Deise, Cassyus Pontes, não se manifestou. A família de Deise tampouco quis prestar declarações para essa reportagem.
Em nota, o escritório Trindade e Mombelli Advogados Associados, que presta assistência à irmã e à mãe de Deise, disse que a família está reclusa, abalada pela situação. “É um momento de dor e sofrimento para todos, não apenas pela investigação envolvendo sua familiar, mas também pela relação de afeto que mantinham com as vítimas”, diz o texto.
Na última postagem que fez no Facebook, 168 dias antes de ser presa, Deise reproduziu frases atribuídas a Santo Agostinho, entre as quais “o castigo de toda mente desordenada é a sua própria desordem” e “reter o perdão é tomar veneno e esperar que aqueles que não foram perdoados morram”.