Por determinação do Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), quatro servidores que atuavam na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do RS (FASE/RS), em Porto Alegre, foram afastados de suas funções dentro da Comunidade Sócioeducativa (CSE), e remanejados para outro setor da instituição, por suspeita de agressão contra internos do local. A decisão acolhe um pedido da Defensoria Pública, que ajuizou ação após relatos de adolescentes que afirmam ter sofrido violência física e psicológica. Os ataques seriam constantes, e ao menos um deles foi flagrado por uma câmera de segurança, segundo a defensoria. Os casos ocorriam, conforme os internos, no setor de atendimento especial da CSE, no complexo da Vila Cruzeiro, em Porto Alegre.
O grupo afastado da unidade, no dia 16, é formado por três homens, que teriam cometido as agressões, e uma mulher, que teria presenciado atos sem reagir ou denunciá-los. Os nomes deles não foram divulgados.
Procurada, a Fase afirmou que um "processo de apuração dos fatos segue em trâmite na corregedoria" da instituição. A fundação não informou para qual setor eles foram deslocados. Confira a nota completa abaixo.
Conforme a defensoria, os episódios ocorriam no CSE, espaço destinado ao cumprimento de sanções disciplinares — para onde são levados jovens que se envolvem em alguma discussão dentro do local, por exemplo, com o objetivo de receber um tratamento mais individualizado. Segundo os relatos, ao chegarem nesse local, os internos eram agredidos e ameaçados. Os ataques ocorreriam dentro de uma sala usada pelos servidores, que não tem câmeras de monitoramento.
Um dos episódios, no entanto, ocorreu fora dali e foi gravado por algumas das câmeras. As imagens mostram um adolescente algemado caminhando ao lado de um dos servidores. Ele é agredido com cabeçadas, xingado e recebe dois socos na altura da cabeça. Em outra imagem, o interno aparece subindo uma escada quando é empurrado por um servidor. Ele bate com as mãos e braços no piso, sem conseguir se proteger da queda, em razão das algemas. O vídeo mostra ainda uma servidora que observa a ação, sem interrompê-la.
O caso teria ocorrido no dia 3 e foi relatado, dois dias depois, pelo adolescente em uma conversa com defensores públicos, que acompanham os internados. Ele afirmou que um dos casos teria sido flagrado nas câmeras. A defensoria solicitou as imagens à presidência da Fundação, e afirma que comprovou as agressões.
A partir disso, mais internos foram ouvidos. Dos 24 jovens do local, 21 afirmaram terem sido agredidos pelos agentes na sala administrativa. Os relatos também indicam violência psicológica, com ameaças para que não falassem sobre os ataques. As agressões teriam ocorrido todas neste ano, mas a defensoria não descarta que possa haver casos mais antigos.
O defensor público Rodolfo Lorea Malhão conta que um dos internos narrou que foi agarrado pelo pescoço enquanto estava sentado e algemado. Na sequência, teria ouvido de agentes que, se fizesse qualquer pedido, seria "arrebentado". Em caso de reclamações, os servidores teriam dito que injetariam remédios em seu corpo e o amarrariam nu em uma maca, para que ficasse fazendo suas necessidades por dias ali.
Um dos internos relatou ainda que os servidores diziam que, no atendimento especial, só era possível pedir "papel higiênico, água e descarga" e que não era permitido sequer conversar com demais adolescentes.
Outro jovem disse que foi ameaçado pelos agentes, que se fizesse algo de errado iria ser "quebrado a pau". A maioria dos internos relatou ter sido agredido com tapas na cara, e recebido ameaças de ser atacado por um grupo de agentes, caso gerassem intercorrência dentro do CSE.
Conforme Malhão, os relatos indicam que as agressões aconteciam principalmente no primeiro contato do adolescente com a unidade, na intenção de controlar e prevenir possíveis conflitos durante a estadia.
— Isso mediante sofrimento, que é justamente o que entendemos por tortura — analisa.
O defensor explica que a função da internação é recuperar o adolescente para que possa, depois, ser reintegrado à sociedade. Ele explica que o interno do local está cumprindo a condenação que recebeu da Justiça por seu ato infracional, e que a violência física e psicológica não pode ser usada como forma de punição:
— O adolescente que ingressa na Fase não está ali para ser meramente punido. O que se quer com a internação é recuperar esse jovem, para que possa retornar a sociedade como um adulto saudável, que viva de forma digna. Como esperar isso de um adolescente que, quando fica sob a guarda do Estado, acaba sendo recebido com a mesma violência, a mesma ilicitude que teve na rua? O Estado está claramente falhando no seu papel de socioeducar, de buscar uma sociedade melhor.
Conforme o defensor, mesmo após as denúncias, um dos adolescentes foi levado ao atendimento especial novamente, onde teria ficado sob custódia dos mesmos servidores. A defensoria afirma que, ao chegar no local, ele tentou se suicidar e teve que ser atendido pela junta médica da Fase.
As imagens que captaram a agressão não foram divulgadas pela Defensoria Pública em razão da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Além de Malhão, também assinam a ação ajuizada as defensoras públicas Paula Simões Dutra de Oliveira e Fernanda Pretto Fogazzi Sanchotene.
"Prática desumana", diz juíza
Na decisão do TJ-RS, do dia 16, a juíza Karla Aveline de Oliveira afirma que são "estarrecedores" os vídeos mostrados pela defensoria, em que um agente dá cabeçadas em um adolescente. A magistrada diz ainda que os relatos indicam "reiterada prática violenta e desumana", e são suficientes para a concessão do pedido liminar de afastamento imediato dos quatro servidores que atuam na CSE, no objetivo de resguardar os direitos de todos os jovens internos na unidade.
Para a juíza que determinou o afastamento, os episódios representam "evidente constrangimento, humilhação e sofrimento psicológico aos adolescentes que se encontram sob a custódia do Estado".
"A Defensoria Pública, mediante a presente ação, trouxe à apreciação judicial episódios de violências, ocorridos em dias diversos com diferentes jovens, mas que igualmente revelam a reiterada prática abusiva, violenta e desumana na condução do trabalho socioeducativo no interior da unidade CSE", avaliou.
"Registro, ainda, que a prática menorista — com pinceladas da época escravagista — no interior das unidades masculinas da FASE desta Capital, de determinar que os socioeducandos chamem os integrantes do corpo funcional de 'seu', 'dona' ou em alguns casos pelos apelidos, sem indicação clara do nome completo dos servidores e sem que a FASE exija a utilização de crachá, por parte de servidor público durante o exercício de atividade pública, dificulta a identificação plena dos agressores quando eclodem episódios de violação de direitos, aumenta a sensação de impunidade e acoberta práticas ilegais", complementou a juíza.
A decisão é da 3ª Vara do Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, e foi proferida no dia 16. No dia 15, a magistrada realizou oito audiências de reavaliação de medidas socioeducativas dos adolescentes internados na CSE — o que ocorre a cada seis meses —, onde foram confirmados os relatos trazidos pela defensoria.
"Isto é, além dos vídeos e áudios já contidos neste processo, que são suficientes e que ancoram a análise do pedido liminar, ouvi pessoalmente os depoimentos dos internos que possuíam avaliação de medida naquela data e que vivenciaram múltiplas violências neste espaço público que deveria ser destinado à socioeducação".
A juíza ressalta que a CSE possui capacidade para 103 internos e encontra-se com apenas 24 jovens, o que representa ocupação atual inferior a 25%.
"A baixa ocupação populacional corresponde justamente à condição mais favorável para prestação de um atendimento qualificado pela FASE o que, na prática, parece não se concretizar", ponta.
Na ação, os defensores públicos também solicitaram a interdição da unidade, por entender que todos os servidores do local devem passar por capacitação antes de o setor voltar a receber internos. O pedido foi negado. A defensoria ainda pediu indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 500 mil, valor que seria destinado a fundo voltado à qualificação profissional dos adolescentes em cumprimento de medida. Ainda não há decisão sobre o pedido.
Contrapontos
Como o nome dos quatro servidores não foi divulgado, GZH não pode localizar suas defesas.
A Fase se manifestou por meio de nota. Confira:
"A Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE) informa que recebeu da 3ª Vara da Infância e Juventude o despacho da juíza Karla Aveline na sexta-feira (16), e conforme determinação judicial afastou os servidores das atividades na unidade. A FASE reitera que o processo de apuração dos fatos segue em trâmite na corregedoria."