
No dia 25 de fevereiro de 2021, o empresário de Bento Gonçalves Roberto Carraro, então com 47 anos, percebeu que seus pulmões não estavam funcionando direito. Por mais que aspirasse o ar ao redor e o empurrasse garganta abaixo, o peito parecia cada vez mais vazio.
A sensação de se afogar a seco afligia uma multidão crescente naquele momento: 1,4 mil pacientes estavam internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) no Rio Grande do Sul com sintomas de sufocamento provocados pela pior onda de covid-19 registrada até então.
Esta terça-feira (11) marca a passagem de cinco anos desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a proliferação do inédito vírus sars-cov-2 como uma pandemia por se tratar de uma ameaça global. Ao anunciar a classificação, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, fez um apelo emocionado:
— Vamos cuidar uns dos outros, porque precisamos uns dos outros.
Impactos sentidos até hoje
A súplica jamais teve o resultado esperado. A devastação causada pela doença transtornou o cotidiano da população e forçou milhares de contaminados como Roberto Carraro a lutar pela vida em hospitais abarrotados.
Ao longo de todo esse período, pelo menos 3,1 milhões de gaúchos se infectaram — e as vítimas, embora em ritmo muito menor, seguem se acumulando.
Em janeiro deste ano, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) catalogou, em média, um óbito por dia em razão da covid no Rio Grande do Sul. Em todo o país, foram 492 vítimas. Em comparação, no pico da letalidade, no final de março de 2021, chegaram a ser notificados mais de 3 mil óbitos por dia no Brasil.
A emergência sanitária foi tão intensa e abrangente que provocou impactos sentidos até hoje: milhares de pessoas alteraram hábitos sociais, mudaram de endereço, ficaram sem fonte de renda ou perderam alguém para sempre, entre outras consequências da catástrofe humanitária e econômica.
Diário da luta pela vida
No auge da crise, Carraro precisou ser socorrido ao Hospital Tacchini. Seguiu piorando e acabou conduzido à UTI — setor de onde apenas um entre quatro pacientes, em média, conseguia sair com vida em todo o Estado naquele mês de horror. Aos médicos, o empresário fez um único apelo:
— Eu não quero ser entubado.
Em sua batalha particular contra o vírus, Carraro decidiu fazer anotações diárias (quando as condições de saúde permitiam) destinadas a compor um diário da luta pela vida. Narrou assim o momento em que foi transferido para a ala de cuidados intensivos apinhada de gente:
"Na sexta, aproximadamente às 16h, como meu estado de saúde piorou, a enfermeira-chefe decidiu em conjunto com o médico que era mais seguro ser internado na UTI. Explicaram (...) que estaria em ambiente com maior monitoramento diante do meu estado de saúde. Fiquei muito assustado e pedi que, por favor, falassem com a minha esposa (...)."
Nos dias seguintes, como seguia em condição crítica, ouviu que poderia ser preciso entubá-lo. Também documentou esse momento:
"Isso me deixou agitado, ansioso e para baixo. Despertou meus pontos fracos, mas me concentrei e, com forças e orações, só pensava coisas boas."
Para compensar a falta de ar, recebeu oxigênio por meio de um cateter nasal de alto fluxo. Realizava exercícios respiratórios para reduzir o risco de entubação. Graças ao empenho e aos esforços da equipe médica, recebeu alta da UTI após nove dias e, ao final de 16 dias de hospitalização, voltou para casa.
— Eu ainda não estava 100%, mas precisava dar lugar a outros doentes piores do que eu — recorda Carraro.
A partir daí, registrou a lenta recuperação das sequelas deixadas pela covid-19 que o deixaram 14 quilos mais magro. Sob o título "principais conquistas", relatou os pequenos avanços cotidianos:
"2° dia: caminhei mais seguro, refeições na mesa. 3º dia: muito mais forte, firme na caminhada, banho quase sozinho, muita fé e força."
No ano seguinte, para comemorar a vitória sobre a doença, correu os 42 quilômetros da maratona de Porto Alegre. O empresário de Bento Gonçalves ainda recorre com frequência ao diário de quando esteve perto de morrer. Mas, agora, relê as páginas como uma mensagem de estímulo.
— Leio o diário como uma forma de me reenergizar, de lembrar o que eu consegui superar — explica, simbolizando um sentimento comum aos demais gaúchos que enfrentaram o pesadelo da covid-19.
"Eram despedidas diárias", lembra médico

Na mesma UTI em que Roberto Carraro balbuciava sucessivos Pais-Nossos para não ser sedado, o médico anestesiologista Leonardo Camargo, 47 anos, experimentava uma rotina radicalmente diferente daquela que conhecia até então.
Em razão da habilidade no manejo das vias respiratórias dos pacientes que anestesiava para a realização de cirurgias eletivas, Camargo passou a trabalhar entubando os doentes mais graves de covid. Nos cinco anos desde a deflagração da pandemia, 137 mil pacientes foram hospitalizados no Rio Grande do Sul em alas de enfermaria, sob sintomas mais leves, ou de cuidados intensivos sob risco de morrer.
— Não sabíamos quanto tempo iria durar aquela situação. Durante a pandemia de H1N1 (em 2009), o centro cirúrgico parou as atividades por um mês. Achávamos que seria igual, talvez se estender um pouco mais. Não foi o que ocorreu — recorda Camargo.
Dia após dia, mês após mês, o médico aparecia à porta das unidades de terapia intensiva para realizar o procedimento a que paciente algum queria se submeter. A exigência de ventilação mecânica representava um risco considerável de jamais acordar da sedação devido à alta taxa de mortalidade dos doentes críticos naquele período. Essa rotina também cobrou um preço alto dos profissionais de saúde envolvidos no manejo dos doentes mais críticos.
— A gente chegava para fazer o procedimento e deparava com os pacientes terminando de falar com os familiares por um tablet, se despedindo. Eram despedidas diárias. Foi algo muito marcante pra mim — conta o anestesiologista.
Em um desses procedimentos, Camargo tomou um susto. Deitado no leito estava um vizinho seu. Como o médico estava usando máscara, não foi reconhecido pelo paciente. Achou melhor se manter incógnito:
— Felizmente, ele sobreviveu. Só mais tarde contei a ele essa história. Hoje, somos amigos.
Camargo, que atua na Clínica de Anestesiologia de Bento Gonçalves e responde pela gestão do Centro Cirúrgico do Hospital Tacchini, conta que a crise do coronavírus ao menos deixou um aprendizado para os estabelecimentos de saúde.
— Desde aquela época, os setores passaram a atuar de forma mais integrada. Fazemos reuniões todos os dias com representantes de diferentes áreas. A relação ficou muito mais próxima — conta Camargo.
Viúva de vítima ainda busca se reconstruir

O maior impacto provocado durante os cinco anos desde que a covid-19 se tornou uma emergência mundial é um número avassalador de mortos.
Até o mês passado, o vírus havia cobrado a vida de 43,2 mil pessoas no Rio Grande do Sul — é como se toda a população de um município do porte de Torres ou de Santo Antônio da Patrulha desaparecesse.
Em todo o Brasil, 715 mil adultos, idosos e crianças pereceram diante do avanço brutal da doença. Isso equivale a todos os habitantes de Caxias do Sul e de Santa Maria somados. Em todo o mundo, foram pouco mais de 7 milhões de vítimas, cifra que corresponde a um país inteiro como a Bulgária fulminado.
Cada uma dessas vítimas deixou para trás amigos e parentes que ainda sentem a perda e, em muitos casos, seguem lutando para reconstruir suas próprias vidas depois de testemunhar os piores efeitos da pandemia.
A cabeleireira de Canoas Daniella Rodrigues Machado, 33 anos, e sua filha Agnes, de quatro anos e meio, tiveram suas trajetórias convulsionadas pela morte do marido e pai Rerisson Machado, 32 anos, ainda nos primeiros meses da crise sanitária.
— Eu fiquei um ano e meio inerte (após a morte de Rerisson). Minha filha tinha três meses quando ele faleceu, e eu tive de recomeçar toda a minha vida — conta Daniella.

Zero Hora acompanha a trajetória da família mutilada pelo vírus desde 2021. Em janeiro daquele ano, quando o país alcançava a marca de 200 mil mortos pelo coronavírus, a cabeleireira enfrentava a pior parte do luto após 14 anos de relacionamento e se esforçava para reorganizar a rotina a fim de cuidar sozinha da filha.
Em outro depoimento concedido em outubro de 2023, havia voltado a trabalhar em um salão de beleza mantido em sociedade com a irmã e se mudara com a menina para um apartamento novo.
Referência para outras pessoas
Desde então, Daniella precisou enfrentar outra tragédia pessoal: a enchente de maio do ano passado inundou o salão e a obrigou a sair do apartamento para a casa de um familiar. Ainda perdeu o carro.
— Depois disso, o pensamento que vinha à minha cabeça era: "Meu Deus, pelo que mais eu preciso passar? O que eu tenho para aprender ainda?".
Daniella se dedica a um novo recomeço.
— Comecei a trabalhar como funcionária em um salão e passei a fazer atividade física. Comecei a correr e a fazer crossfit. Treino todos os dias. É uma alternativa que encontrei às medicações (psiquiátricas) — conta a cabeleireira.
A experiência em se adaptar a desafios pessoais a transformaram em referência para aconselhar outras pessoas que sofreram perdas traumáticas ao longo dos últimos anos. Como seu caso se tornou conhecido na cidade, já foi procurada por uma dezena de mulheres com histórias semelhantes em busca de apoio.
— Tive de aprender a lidar com a situação, fiz terapia. Uma forma que achei de me consolar é pensar que era pra ser assim mesmo. Se ficar tentando achar o porquê de essas coisas acontecerem contigo, nunca vou achar o motivo — afirma Daniella.
Hoje, vive com um novo companheiro, mas faz questão de manter viva a memória do ex-marido para a filha Agnes.
— Ela sabe que o pai dela é o Rerisson, e que era um pai e um marido excelente.
A OMS decretou o fim da emergência de saúde global decorrente da pandemia de covid-19 em 5 de maio de 2023, o que indica a superação da fase crítica de contaminações. O vírus, porém, segue como uma preocupação mundial.