Proposto pelo governo do RS durante a pandemia de covid-19, o modelo de distanciamento controlado teve baixa eficácia na redução da propagação do vírus, segundo pesquisa realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O esquema consistia em um sistema de bandeiras coloridas, atualizado semanalmente, para indicar o nível de restrições a ser adotado em atividades em cada região do Estado.
Desenvolvido pelo pesquisador Ricardo Rohweder, do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular, o estudo buscou avaliar se o modelo foi efetivo e avaliou com precisão a transmissão do vírus, além da eficácia de suas respostas, ao longo de 2020. O estudo explorou se as cores das bandeiras atribuídas pelo modelo refletiam ou afetavam a transmissão do coronavírus. O artigo foi publicado em 15 de janeiro, no periódico Health Security da Mary Ann Liebert, Inc.
Com a orientação de Lavinia Schuler-Faccini e Gonçalo Ferraz, a pesquisa estimou o número efetivo de reprodução, uma medida epidemiológica que mede a velocidade de propagação do vírus. O maior gargalo, à época da crise sanitária, era mensurar como a pandemia estava se desenvolvendo, devido à subnotificação do número de casos, lembra Rohweder.
Os resultados apontam que não houve diferença na transmissão do vírus, independentemente das cores das bandeiras.
— Quando a gente comparava os RTs (número efetivo de reprodução) de bandeira vermelha, amarela ou laranja, que era a intermediária, o RT era basicamente o mesmo. Então, o componente de resposta do modelo de distanciamento controlado não teve sucesso — explica Rohweder.
Quanto ao componente de avaliação, também não foi encontrada associação entre a transmissão e as bandeiras – quando o número efetivo de reprodução aumentava, esperava-se que a bandeira subisse de nível, o que não foi verificado a curto prazo, apenas com um atraso de três semanas.
— A nossa interpretação é que, no fundo, esse componente de avaliação não estava avaliando a velocidade de propagação do vírus. Estava avaliando qual era a situação de procura e esgotamento hospitalar. Então, por isso são três semanas, porque isso coincide com uma métrica que está no nosso modelo, que é o tempo em que acontece a infecção até o tempo em que começam os sintomas e até a morte. Isso dá, em média, três semanas, 21 dias — expõe.
A resposta ocorria somente após uma grande propagação do vírus, e não em tempo real, segundo Rohweder – o que torna mais difícil controlar o cenário.
Apenas quatro bandeiras pretas foram registradas durante o período analisado, com aumento no número efetivo de reprodução do vírus. Quando havia bandeiras vermelhas, cenário que orientava a implementação de medidas mais restritivas e em que se esperaria encontrar reduções na transmissão, estas não ocorreram.
De forma geral, o modelo de distanciamento controlado não fez o que ele se propôs a fazer.
RICARDO ROHWEDER
Pesquisador UFRGS
Tal situação foi registrada apenas em quatro situações específicas, em períodos contínuos. Os casos foram registrados na Região Metropolitana de Porto Alegre, após mais de oito semanas sob a bandeira vermelha.
— Foram nesses casos, os únicos casos, que a bandeira, de fato, resultou, comparando de uma até oito semanas depois, em uma redução — afirma.
O pesquisador classifica a ocorrência como uma exceção em meio a um contexto de muitos outros casos em que o modelo não funcionou ou "funcionou muito pouco". O sistema “avaliou corretamente as mudanças na transmissão do SARS-CoV-2 com um atraso de três semanas, mas suas respostas — representadas por uma escala de cores de bandeira — tiveram pouco ou nenhum efeito na transmissão viral subsequente”.
— Pelo conjunto, a gente tem mais de 600 transições de bandeiras e RT, e a gente encontrou pouquíssimas que tiveram algum resultado significativo. De forma geral, o modelo de distanciamento controlado não fez o que ele se propôs a fazer. Porque ele não conseguiu avaliar bem o que estava acontecendo, como o vírus estava se propagando, e também não conseguiu responder de forma efetiva, que é oferecer medidas que, de fato, pudessem reduzir o RT. Então, de forma geral, ele não funcionou. Houve poucas exceções.
Medidas não farmacológicas
As medidas possíveis em 2020 eram intervenções não farmacológicas, pois ainda não havia vacina contra covid-19 disponível, nem tratamento farmacológico. A recomendação era reduzir o contato entre as pessoas.
Os pesquisadores ressaltam que a dissociação entre as cores das bandeiras e a transmissão não endossa alegações de que as intervenções não farmacológicas são ineficazes, já que não foram encontradas associações entre as cores e a mobilidade da população. A análise das métricas de movimento não mostrou evidências de que as pessoas modificaram seus deslocamentos sob as várias bandeiras.
"Os resultados mostram que as decisões tomadas sob a estrutura do modelo de distanciamento controlado foram ineficazes tanto em influenciar o movimento de pessoas quanto em interromper a disseminação do vírus".
Falhas
Uma das falhas do modelo apontada no estudo foi o componente de avaliação. O parâmetro mundialmente estabelecido em epidemiologia para medir a propagação de doença infecciosa é o número efetivo de reprodução. O modelo de distanciamento, por sua vez, analisava outros 11 indicadores, em um índice composto de transmissão da doença e capacidade dos serviços de saúde.
Além disso, estes mediam momentos diferentes da história natural da infecção ao mesmo tempo – por exemplo, o número de novos casos poderia não estar mais aumentando, enquanto a procura por atendimento hospitalar estivesse.
O modelo trazia a disponibilidade hospitalar como indicador – e podia ser influenciado positivamente pela ampliação de leitos, o que não influencia, porém, em uma propagação menor do vírus. A falha também está relacionada ao objetivo do modelo, que buscava um equilíbrio entre salvar vidas e a economia, avalia Rohweder.
O pesquisador entende que o modelo passou uma mensagem dúbia ao alternar rapidamente as permissões, o que, somado a um esgotamento, enfraqueceu a adesão da população.
Lições para o futuro
Conseguir medir o número de casos em tempo real é o grande desafio, reconhece o pesquisador. O estudo ressalta a importância da tomada de decisões baseadas em evidências, o que o modelo deixou a desejar, salienta. Nesse sentido, a comunidade científica gaúcha tem muito a contribuir.
Para o gerenciamento eficaz de outras pandemias, será necessário investir em massa na testagem de casos e, se forem positivos, realizar o rastreio, de modo a medir o número de novos casos o mais próximo possível da realidade e, a partir disso, estimar o número efetivo de reprodução. "Nossos resultados enfatizam a importância de avaliar a transmissão de patógenos em tempo quase real para produzir respostas oportunas", destaca o artigo.
— A nossa mensagem, pensando em pandemias futuras, é de que parece que o que é mais eficiente é a implementação de medidas não farmacológicas que são consistentes, em vez de ficar mudando de uma semana para a outra — avalia.
O que diz o governo do RS
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou à reportagem que entre março de 2020 e maio de 2022, o RS teve um excesso de óbitos de 25,7%, o menor entre os Estados brasileiros.
“O RS conseguiu manter um controle relativamente eficaz sobre a mortalidade durante a pandemia, apesar de ter uma população envelhecida, o que geralmente aumenta o risco de mortalidade. O Estado implementou medidas de distanciamento social e uma campanha de vacinação eficiente, o que contribuiu para a redução do excesso de óbitos”, afirma a nota.
(O modelo) nos dava norte para condutas importantíssimas para salvar as pessoas.
ANA COSTA
Secretária adjunta da Saúde do RS
A SES aponta que o modelo adotado pelo RS foi uma “abordagem inovadora e adaptável que buscou equilibrar a proteção à vida com a necessidade de manter a economia funcionando”. A eficácia desse modelo, conforme a pasta, pode ser comprovada pela:
- Segmentação regional e setorial, permitindo uma resposta mais precisa e eficaz, com medidas específicas baseadas na capacidade de resposta do sistema de saúde local e na situação epidemiológica
- Flexibilidade e adaptação, com a utilização de bandeiras coloridas para indicar o nível de restrição, o que permitiu ajustes rápidos para responder a surtos localizados e mudanças na taxa de transmissão
- Uso de dados, projeções epidemiológicas e evidências científicas
- Transparência e envolvimento da sociedade em relação às medidas adotadas e os critérios utilizados
- Equilíbrio entre saúde e economia, ao permitir a retomada gradual e segura das atividades econômicas, ajudando a mitigar os impactos econômicos da pandemia
— É importante dizer que a covid-19 era absolutamente nova para todos, tanto para a economia quanto para a saúde, e mesmo não tendo a precisão temporal, ele (o modelo) nos dava norte para condutas importantíssimas para salvar as pessoas — acrescenta a secretária adjunta da Saúde, Ana Costa.
“O modelo de distanciamento controlado do RS foi uma estratégia bem-sucedida que demonstrou a importância de uma abordagem regionalizada, flexível e baseada em dados para enfrentar crises de saúde pública. Ele serviu como um exemplo de como políticas públicas podem ser adaptadas para atender às necessidades específicas de diferentes comunidades, garantindo a proteção da saúde e a continuidade econômica”, diz a pasta.