Quando o comerciário Fernando Ulisses Ulguim Pereira, 52 anos, apareceu em uma cadeira de rodas no saguão do Hospital São Francisco da Santa Casa, em Porto Alegre, o relógio marcava 11h34min. Ensolarada e abafada, a manhã desta quinta-feira (16) foi especial para o morador de Viamão, na Região Metropolitana. Com camisa polo verde, bermuda cinza e chinelos brancos, o paciente do quarto 2.308 deixava a instituição com um coração novo no peito e uma vontade de viver, após oito meses de espera.
A história de superação de Fernando começou em novembro de 2023. Na ocasião, ele passou mal e internou pela primeira vez em razão de problemas potencializados por pressão alta e um quadro de diabetes. Um mês depois voltou para casa, mas os problemas persistiram. Precisou retornar em janeiro para o hospital. Era um vaivém constante e muitas incertezas.
Em fevereiro de 2024, teve um acidente vascular cerebral (AVC). Nova internação de quase um mês. Na sequência, outro retorno para o lar. Passou mal novamente. Em 5 de maio, regressou ao hospital e, no dia posterior, ingressou na fila de espera para transplante de coração.
— Até os meus 35 anos, eu jogava futebol em alto rendimento. Então, nunca percebi nada. Como tinha problema de pressão, meu coração trabalhou demais e ficou grande. Eu tinha coração grande não por problemas cardíacos na família. Mas por eu não ter tratado a minha pressão — explica Fernando ao lado da filha Manuela, 6, e da esposa, a costureira Alessandra Martins de Souza, 40.
Antes disso, ainda em 2020, Fernando contraiu covid. Foi quando esteve internado na Santa Casa para tratar do vírus que os médicos descobriram a anomalia no coração. Naquele momento, nem ele ou a família imaginavam o longo calvário que teriam pela frente até a obtenção do coração e o transplante.
— Eu optei por acreditar. Se eu não tivesse a minha família perto de mim provavelmente eu não conseguiria. É uma situação bem complicada que as pessoas passam aqui. E tem muita coisa que a gente acaba não externando — desabafa Fernando.
Emocionado, ele chora. Um choro de alívio, de uma vitória suada.
— Tem momentos que tu quer ir embora, porque tu não sabe se vai conseguir. E tu pensa no pouco tempo que tem para passar com a família. Só que, de contrapartida, eu entrei com o objetivo de ver os 15 anos da minha filhinha. Eu focava nisso quando ia fazer um procedimento muito complicado — detalha sobre a rotina.
Quando Fernando internou em 5 de maio, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul estavam debaixo d'água. A pior tragédia climática da história do Estado representava um imenso desafio para muitas pessoas. Para Fernando seria o primeiro dia de intermináveis oito meses de espera e de aflição.
Eu saio daqui querendo ajudar. Tu não tem como passar por tudo isso e sair da mesma forma que entrou.
FERNANDO PEREIRA
Transplantado de coração
Nesse tempo, houve complicações. Foi preciso abrir a cavidade torácica do paciente em duas oportunidades. Ele teve perda de sangue significativa e os médicos se viram obrigados a colocar Fernando em coma induzido. Foram 10 dias entre a vida e a morte. Mas então, na segunda quinzena de novembro de 2024, chegou o coração novo. No dia anterior ao implante, ele tinha recebido um marca-passo.
— Quando eu dei por mim, já estava com o coração. Por isso digo que a minha esposa acabou transplantando junto comigo. Porque ela que acompanhou tudo isso — diz.
Questionado sobre a aprendizagem dessa experiência, Fernando destaca a transformação na maneira de pensar.
— Eu saio daqui querendo ajudar. Tu não tem como passar por tudo isso e sair da mesma forma que entrou. Assim como eu recebi esse coração e outras pessoas receberam outros órgãos, teve família que perdeu alguém. Penso em valorizar e tentar ajudar — destaca.
Fernando menciona que é preciso as pessoas deixarem claro para os familiares o desejo de serem doadoras:
— Todo mundo que puder doar qualquer órgão estará dando a oportunidade para uma família.
E para quem ainda está na fila de espera por um coração, ele tem uma mensagem:
— Ter resiliência, fazer o máximo possível para focar naquilo que quer. Eu entrei tendo um objetivo. Tive a minha família, principalmente a minha esposa. E pessoas que já fizeram transplante vinham me visitar. Meu objetivo era ver os 15 anos da minha filha. Agora é ver os meus netos.
A esposa Alessandra reflete como foi superar o período no hospital ao lado do marido. Os dois são casados há sete anos e, além de Manuela, têm mais dois filhos: Murilo, 11, e Wagner, 22.
— Acredito que a gente tenha passado pela maior provação de vida. É sempre uma renovação de fé e de esperança e de que vai dar certo. Existem pessoas que vão ajudar. A humanidade ainda não está perdida. A sensação é de que a gente recebeu muita ajuda nesse caminho todo. De pessoas que nem conhecíamos e já estavam estendendo a mão. É isso que dá força para a gente seguir e não desistir, porque muitas vezes pensamos em desistir.
Para a médica Joana Junqueira, coordenadora do Serviço de Transplantes Cardíacos da Santa Casa, a história de superação de Fernando contagiou a equipe. Atualmente, seis pacientes esperam por um coração na instituição. Em 2024, foram realizados nove transplantes e mais dois pediátricos.
— Para nós é sempre uma gratificação. Desde o início do processo acabamos sendo inseridos na vida da família. Entramos muito nessa rotina e são muitas pessoas envolvidas — comenta.
De volta ao saguão, Fernando foi aplaudido por enfermeiros, médicos, funcionários e pessoas que acompanharam sua vitória. Chorou e foi abraçado pela filha. Neste instante, o irmão Júlio Aquiles, 48, chegou.
— É uma felicidade, nem a gente acreditou. É difícil a doação. Até quem puder doar, doe. Salva muitas vidas mesmo — compartilha o irmão.
Ainda faltam nove anos para a festa de 15 anos de Manuela. Mas o presente de toda família chegou mais cedo. Um coração bate forte no peito dele.