Pela primeira vez em 194 anos de história, a Academia Nacional de Medicina, com sede no Rio de Janeiro, elegeu uma mulher para a presidência. A mineira Eliete Bouskela, 73 anos, deve tomar posse em 2024. É professora da Universidade do Estado do RJ (UERJ) e especialista em fisiologia cardiovascular, pesquisa clínica e microcirculação, que é a troca de nutrientes entre o sangue e o tecido. Estudando esse processo e a interação com doenças, chegou à obesidade, tema que domina. Eliete relaciona o problema do excesso de peso à solidão, na entrevista a seguir, em que também fala sobre a sua eleição e a educação alimentar no Brasil e no mundo.
Por que levou quase 200 anos para uma mulher chegar à presidência da Academia Nacional de Medicina?
Já pensei sobre isso. Tenho a impressão de que as mulheres não se convenceram de que elas poderiam chegar lá. Ou não acreditaram. Mais do que se convencer, não acreditaram. A primeira mulher foi eleita para a academia em 1985. Eu entrei em 2004 e sou a quinta. Neste ano, elegemos a décima. Não tem massa crítica, não tem número de mulheres. Houve uma primeira mulher, no início da história da academia, que foi nomeada por Pedro II porque era parteira dos filhos dele. Não era nem mesmo médica, era parteira. Mas, fora isso, a primeira mulher eleita entrou em 1985. Hoje são sete entre cem acadêmicos.
O que essa eleição representa para a senhora?
Representa, primeiro, o fato de que nós podemos. Segundo, tenho ideias do que gostaria de fazer nesses dois anos e resolvi tentar. A academia é um lugar muito interessante. Você revê a medicina de uma maneira geral. Acho que estamos em uma crise no Brasil com o excesso de escolas de Medicina, com um ensino que não é bom em todas elas. Na academia, por causa desse plantel de acadêmicos de muito boa qualidade, podemos oferecer cursos de educação continuada para jovens médicos. Já temos um programa de jovens lideranças, médicos com menos de 40 anos. Então acho que o que me moveu foi isso, a vontade de fazer mais o que fomos criados para fazer, que foi um órgão para assessoramento do governo em saúde.
Pode descrever seus temas de pesquisa?
Comecei trabalhando em pesquisa com microcirculação, que é a troca de nutrientes entre o sangue e o tecido. Comecei com a microcirculação na asa de morcego, uma coisa que me encantou durante o meu doutorado nos Estados Unidos. Quando me mudei para o Brasil, de volta, vi que gostaria de trabalhar em coisas mais aplicadas e comecei com doenças que causam defeitos na microcirculação. Quase todas as doenças têm problemas na microcirculação, mas uma doença muito conhecida é o diabetes. Fiz também modelos experimentais de doença, para fazer o que se chama de pesquisa translacional. Quer dizer, você começa no animal experimental com um modelo de doença e vai até o paciente. Fui para a obesidade porque a minha ideia era estudar o diabetes tipo 2, chamado antigamente de diabetes da maturidade. Só que esse diabetes está acontecendo cada vez mais cedo por causa do sedentarismo, da obesidade etc. Antigamente, esse diabetes acontecia, normalmente, a partir dos 40 anos. Hoje já tem a partir dos 20, às vezes até antes disso. Queríamos saber se em pessoas sem diabetes, só obesas, já havia defeitos na microcirculação. Descobrimos que sim. Aí enveredamos por obesidade, que é uma doença muito interessante e que hoje acomete 1 bilhão de pessoas no planeta. Trabalho com a observação da microcirculação numa gama grande de doenças, mas o carro-chefe do laboratório ainda é a obesidade.
O diabetes tipo 2, chamado antigamente de diabetes da maturidade, está acontecendo cada vez mais cedo por causa do sedentarismo, da obesidade etc. Esse diabetes acontecia, normalmente, a partir dos 40 anos. Hoje já tem a partir dos 20, às vezes até antes disso.
Quando a senhora começou a se interessar pela obesidade, na década de 1970, o Brasil e o mundo ainda não tinham populações tão acima do peso. O que aconteceu de lá para cá?
Em 1974, fui para os Estados Unidos e fiquei chocada. Aqui no Brasil não havia grandes obesos, e lá já havia. Pessoas quase com obesidade mórbida andando na rua, aquilo me chocou. Durante o curso de Medicina, fiz um ambulatório de obesidade e me interessei muito. O obeso não se achava, naquela época, pelo menos, doente. Hoje está bem estabelecido que a obesidade é uma doença. Temos que lembrar que, em tempos imemoriais, o obeso era o rico, o rei. Era um sinal de que a pessoa era bem de vida. Bom, e o que aconteceu? Ficamos cada vez mais sedentários e tivemos uma oferta cada vez maior de comida. Na minha época, criança pulava corda, brincava de pique-esconde, corria. Hoje as crianças não fazem nada disso. As mães gostariam que os filhos ficassem dentro de casa porque é menos perigoso. Então tem que lutar para as crianças saírem do celular, da televisão ou do computador. A gente tem uma balança, uma equação de balanceamento de massa. O que entra (em calorias) ou é armazenado, ou você gasta. Se você não gasta, isso se deposita, não tem outra saída. As pessoas estão cada vez mais sentadas. Quando você escuta o jornal no rádio, por exemplo, tem gente que vai lá lhe dizer quais são as séries que você pode maratonar durante o fim de semana, o que significa que você não vai sair do sofá. E, evidentemente, vai comer. Só trabalho no SUS, e as mulheres das classes D e E, muitas chefes de família, normalmente trabalham como diaristas. Elas saem cedíssimo de casa, voltam tardíssimo e não cozinham. O que as crianças delas comem? Comem as coisas que quiserem comer, que não são, necessariamente, alface, tomate, couve, vagem. Comem aquilo que está pronto, macarrão instantâneo, biscoitos recheados. O consumo de arroz com feijão no Brasil está completamente despencado, caiu mais de 50%, porque ninguém cozinha. Recentemente, atendemos uma criança de sete anos com cem quilos. Uma criança de quatro anos com 75 quilos. É uma loucura total. Pergunto sistematicamente: o que a senhora faz de comida para as suas crianças? Elas dizem: “Doutora, eu não cozinho”. As crianças comem o que está disponível. Além disso, essas coisas ficaram relativamente baratas. Temos que lembrar que vegetais e frutas não duram e são caros. Para ficarem gostosos, têm um preparo, e ninguém quer fazer isso. E as crianças não saem mais de casa. Não se criam pessoas interessadas em se movimentar. As crianças não têm mais tanto interesse em correr, brincar, ficar no playground. Estamos com tudo muito ruim. A internet tem várias coisas muito boas e várias coisas muito ruins. Na minha época, a pessoa queria ser médica, engenheira ou advogada. Hoje as crianças querem ser tiktoker ou influencer. É maluco. Você vê casais entrando em restaurante cada um com o seu celular.
O consumo de arroz com feijão está despencado no Brasil, porque ninguém cozinha. Recentemente, atendemos uma criança de sete anos com cem quilos. É uma loucura. Pergunto (para a mãe): o que a senhora faz de comida? Elas dizem: ‘Doutora, eu não cozinho’. As crianças comem o que está disponível.
E as crianças não estão sendo desviadas desse caminho.
Porque é muito mais fácil, entende? A criança fica quieta. Antigamente, na época do meu pai, o homem tinha obrigação total de manter a casa. Um homem que não pudesse manter a casa era uma vergonha social. Aí mudou. A mulher saiu para trabalhar. E o homem, digamos assim, na maioria dos casos, obviamente que não são todos, ele não adicionou mais uma coisa. Nós adicionamos mais uma coisa, nós saímos para trabalhar. De uma maneira geral, a casa ainda é nossa responsabilidade. Muitas vezes, a mãe se sente culpada por não dar atenção ao filho e mima a criança com aquilo que ela quer. Você não chega em casa cansada para discutir com a criança que ela não pode usar o celular. Você quer um pouco de sossego também. E aí se criam essas coisas. O fast-food pegou praticamente no mundo inteiro. Acho que o último bastião de resistência era a França, mas não é mais. Todo mundo come porque é mais prático, mais rápido. Você pede um hambúrguer do McDonald’s em qualquer lugar do mundo e é idêntico. Você já sabe o que vai comer. Há cada vez mais propaganda disso. Você pergunta a uma criança se ela quer ir no McDonald’s, e claro que ela quer. Ela sabe o que isso significa. Antigamente, você andava de loja em loja para fazer uma pesquisa de preço. Hoje está tudo concentrado no mesmo lugar, o shopping center, com escadas rolantes.
Ou se compra tudo pelo celular, com menos esforço físico ainda.
Exatamente. E, ao mesmo tempo em que você aumenta de peso, há as lojas fazendo a apologia da magreza, né? Outra coisa curiosa que vi nos Estados Unidos, em uma das últimas vezes em que fui, é que já tem muitas lojas de roupas com todas as medidas. O gordo não gosta de provar roupa na loja, então ele não precisa mais ir à loja para comprar roupa. Isso é interessante. O gordo também tem uma certa vergonha de pedir comida. Se você olhar aqueles resorts de Cancún, que basicamente são frequentados por americanos, eles têm comida 24 horas por dia, comida posta. São um sucesso absoluto. A mesma coisa acontece nos navios.
O que as pessoas buscam na comida, no excesso de comida?
Quando você come, geralmente, tem companhia. Ou então busca prazer. Glicose dá prazer, né? Comer uma coisa que você gosta dá prazer. Lembro de um pesquisador inglês que disse que, em casa de gordos, até o cachorro é gordo porque todo mundo come muito. Por outro lado, as pessoas têm aquela compulsão alimentar. Você come muito e, ao mesmo tempo, se sente culpado porque comeu e aí fica ansioso, não consegue parar, come mais. É um mecanismo muito estranho. É difícil. Mesmo com a cirurgia bariátrica, acontece, muito frequentemente, ganhar peso de novo. A cabeça não muda, a pessoa quer continuar a comer.
Antigamente, a gente se encontrava mais. Falamos muito por WhatsApp, por vídeo, e muito menos pessoalmente. Você já reparou que todas as pessoas que têm Facebook e Instagram mostram que são extremamente felizes? Não há catástrofes. As pessoas não sofrem, o que é irreal. Então, ficam em casa remoendo os seus problemas e têm muito pouca gente com quem dividir. Há o consolo da compensação, a pessoa come porque não tem muita coisa para fazer. A comida virou uma companhia.
A senhora associa obesidade e solidão. Pode falar um pouco sobre isso?
Antigamente, a gente se encontrava mais, e hoje se encontra menos. Falamos muito por WhatsApp, por vídeo, e muito menos pessoalmente. Você já reparou que todas as pessoas que têm Facebook e Instagram mostram que são extremamente felizes? Não há catástrofes. As pessoas não sofrem, o que é irreal. Então, ficam em casa remoendo os seus problemas e têm muito pouca gente com quem dividir, se é que têm alguém para dividir esses problemas. Há o consolo da compensação, a pessoa come porque não tem muita coisa para fazer. Até para o cinema as pessoas vão menos. Vão menos ao teatro. Encontram-se menos. A comida virou uma companhia, e você usa essa companhia como quer. Todos dizem que vão começar a dieta, mas isso dura três ou quatro dias e depois acaba. Para combater as doenças crônicas, o compromisso é de vida, enquanto todo mundo quer uma pílula mágica para emagrecer sem fazer esforço – haja vista o sucesso do Ozempic (medicamento indicado para tratar o diabetes que vem sendo utilizado para perder peso). Esquecem-se de que, quando param com o Ozempic, o problema volta, e o remédio não é livre de efeitos colaterais. Nossa sociedade de hoje tem muita solidão, e você compensa essa solidão, de alguma maneira, com comida. Outro dia discuti com uma menina que me disse que tinha não sei quantos seguidores (nas redes sociais). Perguntei: no dia em que você tiver um problema, vai conversar com quem? Ela me olhou com uma cara como se eu fosse um ET. As pessoas não têm com quem conversar sobre problemas. Elas postam coisas sobre uma vida glamourosa que, na realidade, não existe. Você vive numa situação quase de teatro, de representação. E a pessoa é infeliz. Essa história de que os gordos são felizes é uma das maiores mentiras que são contadas. A maior incidência, a maior proporção de depressão é em obesos. Mas existe, por alguma razão que não compreendo, a ideia de que o gordo é feliz, que ri muito, que o gordo é isso, que o gordo é aquilo. Não é real isso. A gente presta muito pouca atenção nas pessoas. Quando você se encontra com as pessoas, e como você encontra menos as pessoas, elas não querem ouvir os seus problemas, as suas tragédias. Elas querem que você diga que foi no restaurante X, que viajou para o país Y, fez isso, comprou isso, comprou aquilo. E como isso não é real, você também não pode encontrar com as pessoas muitas vezes porque não tem muitas coisas desse tipo para contar. Então as pessoas se encontram menos, falam menos e ficam com seus problemas, mesmo sabendo da tragédia que é você ser obeso. Tem muito médico obeso mesmo sabendo de tudo. Tem gente que trabalha no meu laboratório ou já trabalhou no meu laboratório e é obesa. É um pouco paradoxal.
Quando a relação com a comida se torna doentia?
Primeiro, quando você sai do equilíbrio, quando come mais do que gasta. Segundo, quando o seu peso começa a incomodá-lo. Até hoje, não conheci nenhum gordo que não esteja incomodado com o peso. Antigamente, eu achava que o gordo era um sem-vergonha. “Ah, mas por que você não consegue emagrecer? Que coisa!” E hoje sei que não é isso. É muito mais complexo. No começo, você acha que é só um quilo a mais: “Daqui a pouco eu perco.” Dois quilos a mais, daqui a pouco são 10 quilos a mais. E aí você percebe que não tem mais condições de perder isso com facilidade, sem fazer muito sacrifício. Então as pessoas ficam cada vez mais ligadas nisso e se cria um círculo vicioso. As pessoas são infelizes por estarem com esse peso e, ao mesmo tempo, não têm coragem de encarar um sistema (de alimentação saudável) para o resto da vida. Porque esse é o problema, sabe? Acho que qualquer pessoa faz dieta por uma semana ou por um mês. Agora, manter isso... Você tem muita dificuldade para fazer isso o resto da vida. Realmente acho que (a obesidade) é uma das doenças mais incríveis de se estudar. Você pode olhar um obeso sob praticamente todos os pontos de vista: psiquiátrico, endocrinológico, oncológico. Fizemos um trabalho com mulheres jovens, e uma das perguntas era: quando você começou a enfiar o pé na jaca? Em outras palavras, quando é que você passou de gordinha a gorda? Veja que coisa interessante: isso é muito ligado a uma perda importante na vida dessas pessoas. Na maioria dos casos, as pessoas respondem que foi a morte de uma mulher, que pode ser a mãe ou a avó, ou então uma traição, um abuso sexual. Geralmente é uma coisa muito traumática, e a pessoa começa a se compensar comendo. Outra coisa curiosa: as pessoas obesas são aquelas que, quando ficam tristes ou ansiosas, comem. Existe um outro grupo de pessoas que, quando ficam tristes ou ansiosas, param de comer. Essa relação estranha com a comida é relativamente recente. Lembro muito bem que, quando estudei Medicina – me formei em 1973 –, a gente não falava em anorexia nervosa, por exemplo, não falava em bulimia, e isso hoje está na ordem do dia. Outra coisa que eu queria falar é que o manequim 40 de hoje não é o mesmo de 20 anos atrás. É maior. É maior porque todo mundo quer usar um número menor.
Inicialmente, (devemos combater a epidemia de obesidade) educando as mães. Segundo, acho que a gente precisa interferir fortemente nas cantinas escolares. Muitos legumes e vegetais são desconhecidos das crianças. Temos que educar. Não vejo outra saída.
Toda refeição precisa ser prazerosa? Não é errado buscar o prazer toda vez que se come? Não basta que a comida seja nutritiva?
Acho que as pessoas que têm peso normal não buscam o prazer, necessariamente. Buscam a nutrição. As pessoas que são obesas buscam prazer na comida. Quando você começa a engordar, acho que perde essa noção de alguma maneira.
Como se deve combater a epidemia de obesidade?
Inicialmente, educando as mães. Segundo, acho que a gente precisa interferir fortemente nas cantinas escolares. As cantinas das escolas pagas, e muitas vezes muito bem pagas, têm coisas absolutamente não saudáveis. O Brasil é um dos países onde ainda se tomam litros de refrigerante. Muitos legumes e vegetais são desconhecidos das crianças. Temos que educar. Não vejo outra saída. Temos que dizer que vamos ficar mais doentes. Uma das doenças de que tenho mais horror é a demência de Alzheimer, uma das demências mais faladas. Ter diabetes é um fator de risco imenso para Alzheimer, que é considerado hoje, por muitos, o diabetes da terceira idade. Temos que conscientizar as pessoas: olha bem, é isso que você quer? Veja bem.