O caso da jovem mineira Jéssica Canedo, 22 anos, que tirou a própria vida após ser exposta a fake news e linchamento virtual, trouxe à tona os impactos do cyberbullying para a saúde mental. Ataques virtuais se multiplicaram por conta de um vazamento de supostas conversas da jovem com o humorista Whindersson Nunes, o que indicaria um relacionamento, negado por ambos. Segundo a família da estudante, ela “não resistiu à depressão e a tanto ódio”.
Para a psicóloga de orientação psicanalítica, Pietra Manzoli, o bullying — potencializado pelo cyberbullying nas últimas décadas — é ligado diretamente a algo muito próprio do ser humano.
— Todos nós nos constituímos psiquicamente a partir do outro. Ou seja, desde muito pequenos nós formamos a visão que temos de nós mesmos a partir do que o mundo nos diz sobre nós, se diz que somos bonitos, feios, bons, maus, engraçados. Dependemos do outro para construir a nossa própria identidade — reflete.
A internet, segundo Pietra, facilita o esquecimento de que, do outro lado da tela, também está um ser humano, que precisa fazer um trabalho muito complexo para constituir sua própria identidade e filtrar aquilo que vem de fora.
— Mas, como temos a tendência de ver aqueles que se expõem na internet como “menos humanos”, quase descorporificados, colocamos eles no lugar de grandes “lixões”. Como se pudéssemos colocar tudo aquilo que sentimos e que não conseguimos digerir para eles através das ofensas. As nossas emoções difíceis desaparecem das nossas vistas, mas afetam, e muito, o outro em que elas chegam— explica a psicóloga.
Quando ouvimos uma ofensa, de acordo com Pietra, é muito árduo o trabalho para entender que o dito pelo outro não nos diz respeito. Mas ter este discernimento não é um processo fácil, segundo ela.
— Precisamos, antes de tudo, ter uma boa noção de “o que sou eu” e “o que é o outro”. Mais complexo que isso: precisamos ter um “arsenal” de coisas boas que o mundo já disse sobre a gente guardado dentro de nós, que sirvam de evidência interna para conseguirmos pensar que aquilo que está sendo dito sobre nós não é verdade. Nem sempre temos essas proteções. E é mais difícil para quem é mais jovem, crianças e adolescentes, porque a noção de eu/outro ainda é incipiente — pontua.
Quem pratica também pode estar doente
Segundo o psiquiatra Daniel Arenas, o bullying é um tipo de violência e, por isso, merece ser debatido como um assunto de saúde pública e nas áreas social e jurídica.
— É importante falar sobre o bullying porque é um dos fatores de riscos mais graves e preveníveis em relação a adoecimento mental na vida adulta. No caso do cyberbullying, é pior, porque pode acontecer quando a pessoa não está presente e, em qualquer lugar em que estiver, a vítima pode ser agredida.
Precisamos ter um “arsenal” de coisas boas que o mundo já disse sobre a gente guardado dentro de nós.
PIETRA MANZOLI
Psicóloga
Arenas lembra que no anonimato de um perfil falso o agressor se sente mais protegido para cometer o ato que, muitas vezes, aumenta o risco de adoecimentos psíquicos, estresse pós-traumático, depressão e automutilações, que pode ter suicídio como desfecho.
— Pessoas que sofrem este tipo de violência costumam apresentar diminuição no rendimento escolar, acadêmico ou profissional, redução da autoestima e, consequentemente, da sensação de autoeficácia. São danos na saúde, mas também em aspectos práticos — frisa o médico.
O psiquiatra chama atenção para a condição de quem pratica o cyberbullying. Por falta de “repertório social”, não conseguem, a não ser com a agressão, impor a sua vontade. Este tipo de ação, segundo Arenas, busca chamar a atenção de determinado grupo, aproveitando o “efeito manada”.
— Em geral, essas também tem um risco alto de adoecimento mental. Muitas vezes, elas já estão doentes e o bullying acaba se tornando uma forma de expressar isso. Há casos em que já foram agredidos e podem estar fragilizadas de alguma forma, utilizando este recurso para atingir outros. Nos casos mais graves, há um transtorno de conduta em que falta empatia para a pessoa perceber que está agredindo o outro.
Para o especialista, o tema merece um envolvimento dos mais variados âmbitos para se lidar com a situação.
— É um trabalho de todos, pais — de agressor e agredido —, escola, serviços de saúde, instituições governamentais e legislação. As pessoas que sofrem este tipo de violência devem buscar ajuda, apoio social e psicológico e, dependendo do caso, acompanhamento psiquiátrico.
Há um transtorno de conduta em que falta empatia para a pessoa perceber que está agredindo o outro.
DANIEL ARENAS
Psiquiatra
A ajuda profissional, segundo ele, contribui com um trabalho também realizado em algumas campanhas antibullying, que enfatizam o treinamento de habilidades sociais para lidar melhor com agressões virtuais.
— É importante também que outras pessoas, ao presenciar essa violência, denunciem para não "dar plateia" aos agressores, que buscam exatamente ter um público.
Dados no RS
No Rio Grande do Sul, em 2022, segundo dados do Informe Epidemiológico Suicídio e Lesão Autoprovocada divulgados em setembro pela Secretaria Estadual da Saúde (SES), houve 1.560 mortes deste tipo, uma taxa de 14,4 por 100 mil habitantes, a maior da série histórica apurada desde 2010. O índice nacional é de nove a cada 100 mil.
Ainda, segundo o levantamento da SES, entre 2010 e 2019, houve aumento da incidência em todos os grupos etários, com destaque para adolescentes entre 15 e 19 anos, público mais conectado à internet, segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
Tipos e características da violência online
- Disseminação não consentida de imagens íntimas: humilhar, expor, constranger alguém por divulgação de imagens íntimas. Por vezes, mencionada como cybervingança ou pornografia de vingança
- Discurso violento: constranger ou diminuir, fazendo uso de discurso agressivo
- Vigilância eletrônica: ocorre quando o agressor vigia as ações ou monitora suas conversas em meio eletrônico ou plataformas digitais
- Sextorsão ou sexting: vazar ou usar imagens íntimas para chantagear ou extorquir a vítima
- Cyberbullying: ofender e agredir alguém em ambientes digitais. Fazer montagens ou criar “memes”, com intuito de humilhar, ridicularizar, expor, constranger
- Perfil falso: é também conhecido como perfil fake ou impersonation. Diz respeito a situações nas quais alguém usa uma identidade falsa e comete atos que prejudicam a vítima ou que resultam em ganhos pessoais para o falsificado
- Perseguição: utilizar a internet ou outro meio digital (como mensagens no celular) para perseguir, assediar ou ameaçar, causando medo. A perseguição ou monitoramento também pode acontecer por meio das redes sociais de amigos, parentes, filhos e conhecidos da vítima;
- Censura ou controle: impedir que o indivíduo tenha acesso aos meios digitais (deletar perfil, trocar senhas das redes sociais, etc.). Silenciamento por meio de intimidação e ameaça (denunciar fotos e postagens).
Procure ajuda
Caso você esteja enfrentando alguma situação de sofrimento intenso ou pensando em cometer suicídio, pode buscar ajuda para superar este momento de dor. Lembre-se de que o desamparo e a desesperança são condições que podem ser modificadas e que outras pessoas já enfrentaram circunstâncias semelhantes.
Se não estiver confortável em falar sobre o que sente com alguém de seu círculo próximo, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. O CVV (cvv.org.br) conta com mais de 4 mil voluntários e atende mais de 3 milhões de pessoas anualmente. O serviço funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados), pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil (confira os endereços neste link).
Você também pode buscar atendimento na Unidade Básica de Saúde mais próxima de sua casa, pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), no telefone 192, ou em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Estado. A lista com os endereços dos CAPS do Rio Grande do Sul está neste link.