O número de pessoas envolvidas em uma pesquisa que completa 40 anos é grande. Se considerar que é a maior da América Latina em número de pessoas investigadas, dá para imaginar quantas histórias de vida de quatro gerações de milhares de pessoas que participam, desde 1982, da Coorte de Nascidos Vivos realizada por cientistas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Casais, pais e filhos relatam diferentes momentos e lembranças sobre suas participações nas pesquisas, mas têm um ponto em comum: entendem a importância de ser parte de um trabalho que já trouxe muitos resultados científicos. Além disso, há descobertas do estudo que foram colocadas em prática pelos próprios participantes, como a importância do aleitamento materno para mães e filhos.
Família da ciência
Na alegria, na tristeza e na coorte 1982 de Pelotas. É desta forma que o casal formado pela dona de casa Janaína Martins Melgarejo Guidotti, 39 anos, e o diretor de Meio Ambiente de Capão do Leão, Tiago Guidotti, 40 anos, se apresenta. Ambos fazem parte da primeira turma de pesquisados – Janaína completará 40 anos em 29 de julho. Para completar a tríade, o primeiro filho do casal nasceu em ano de Coorte. Tiago Samuel Melgarejo Guidotti, 17 anos, é da turma de 2004.
Tiago conta que os dois se conheceram no que chamam de "amor de barriga". As mães de ambos iam no mesmo ônibus para o serviço enquanto estavam grávidas dos dois. Depois de alguns meses, elas se reencontraram e descobriram que os filhos, Janaína e Tiago, haviam nascido e faziam parte da pesquisa. Nasceu ali, uma amizade entre as famílias.
Com o passar dos anos, Janaína e Tiago foram se aproximando. Na etapa dos 18 anos do estudo, estavam namorando e foram juntos fazer os testes. Eles casaram em 2001, e Tiago Samuel veio três anos depois. Por acaso, no ano de uma nova coorte da UFPel.
– No último teste da coorte, há dez anos, já estávamos casados. Para entrar nas máquinas precisávamos colocar uma toca e roupa especial de cor verde, que nos deixou parecendo ETs. Rimos a tarde toda e era como se não nos conhecêssemos – recorda Janaína, gargalhando.
Tiago faz questão de ressaltar o sentimento de honra por fazer parte dos estudos junto com a família – o casal tem mais dois filhos que não são da coorte.
– É um estudo que cada vez mais se aprimora. Por meio de pesquisas sobre a nossa saúde, estamos ajudando a cuidar de outras vidas, de geração em geração. A balança da nossa época, por exemplo, era mais precária, e os pesquisadores vinham em casa. Com o Tiago Samuel foi tudo diferente. Agora, vamos ao Centro e usamos máquinas muito potentes - comenta Guidotti.
Tiago e Janaína não foram amamentados, como boa parte dos bebês pesquisados em 1982. Janaína, ao contrário, com as orientações que surgiram a partir da pesquisa da qual faz parte, amamentou os três filhos.
– É um orgulho estar numa pesquisa tão importante e que já ajudou tantas pessoas – finaliza Janaína.
De pesquisado a colega
Na infância, o hoje administrador de redes Tiago Tessmann Oliveira, 40 anos, não imaginava que um dia seria colega daquelas pessoas que iam até a casa da família dele para lhe fazerem inúmeras perguntas. Tanto que o primeiro contato com a pesquisa que ele admite recordar ocorreu aos 18 anos, quando uma etapa dos estudos ocorreu no quartel da cidade.
– A parte que sempre recordo e costumo brincar é que, nas etapas já da fase adulta, nos diziam que estariam implantando um chip para poderem monitorar a nossa vida – revela, aos risos.
Desde 2002, Tiago trabalha na área de tecnologia do Centro de Pesquisas Epidemiológicas. Curiosamente, conta ter chegado até a vaga depois de ver a oferta de emprego nos classificados. Tiago não fazia ideia de que a função estava relacionada ao projeto o qual participava como pesquisado.
Em 40 anos de estudo, Tiago foi percebendo as mudanças no desenvolvimento do estudo, desde a forma como os questionários são aplicados até o uso de aparelhos de alta tecnologia para avaliação corporal. Assim como os outros entrevistados, o administrador de redes só tem elogios para o trabalho dos cientistas da UFPel.
– É um privilégio bem grande fazer parte deste tipo de acompanhamento, pena que toda a população não pode ter a mesma oportunidade de participação – finaliza.
Nascido para a coorte
A gravidez previamente planejada por Daiane da Motta Xavier, 39, e Thiago Terra Borges, 40 anos, deu ao primeiro filho dos dois a possibilidade de ser integrante da coorte 2015, a mais recente formada pelo grupo de pesquisadores.
A engenheira química revela que os dois escolheram ter o filho num ano de coorte. Depois de calcularem e descobrirem que haveria uma nova turma, eles se programaram para ter o filho no período da pesquisa. Daiane, que completa 40 anos neste mês, faz parte da coorte 1982 e sempre demonstrou orgulho de ser uma das pesquisadas. O ex-marido cursou o doutorado na área da epidemiologia da universidade e, por isso, também é um admirador do trabalho realizado na UFPel.
– Me sinto privilegiada por eu e meu filho estarmos na pesquisa. Quando eu era criança, não tinha esta dimensão. Mas, a partir da adolescência, comecei a ver que a pesquisa é muito importante – conta Daiane, que é engenheira química e doutora na área e hoje trabalha como técnica de laboratório na UFPel.
Nas memórias de Daiane relacionadas ao estudo, a primeira é de uma cena de quando os pesquisadores estiveram na casa da família e a pesaram em uma balança pendurada na porta. Ela ainda era bebê. Depois, na adolescência, Daiane tem flashes de quando respondia as perguntas na casa da mãe. Na vez mais recente de estudos, já aos 30 anos e no centro de pesquisa, ela participou de diferentes exames em equipamentos mais modernos. O filho Miguel, que hoje está prestes a completar sete anos, participou de todos os estudos já no prédio erguido e destinado a essa finalidade. A mais recente etapa da Coorte 2015 ocorreu em abril deste ano.
Cada momento da pesquisa é diferenciado. No caso de Miguel, Daiane conta que nos primeiros dois anos participava das atividades com o filho apenas para orientá-lo, sem ajudá-lo. Eram testes para analisar as habilidades do menino. Nos estudos de abril, foi diferente: Miguel participou sozinho.
– Ele curtiu. Foi tranquilo. Usou até a roupa verde para fazer os exames no equipamento – revela a mãe, contando que fez até foto da criança com a roupa que sempre faz os pesquisados rirem.
Daiane diz não se incomodar por desconhecer os resultados dos seus próprios exames. E garante que se fosse chamada mais vezes ao longo dos anos, iria sem pensar duas vezes.
– Quantas coisas (na área da saúde) mudaram desde quando nasci para a coorte do meu filho. A amamentação, principalmente. Enquanto mamei poucos meses, o Miguel mamou até os dois anos e dois meses. E isso veio com os conhecimentos divulgados pela pesquisa, o que é muito interessante – comenta.
De tão admiradora do trabalho do qual participa, Daiane faz questão de guardar os mimos recebidos pelo filho a cada nova etapa do estudo, como a roupa que ele ganhou ao sair do hospital e a garrafinha de água recebida neste ano.
Teorias no Orkut
Ex-membro da comunidade X-Files Pelotas do extinto Orkut, destinada aos pesquisados de 1982, a advogada Natália Redu jamais esqueceu a turma formada naquele espaço virtual e que inventava teorias sobre a pesquisa. Prestes a completar 40 anos, Natália faz questão de demonstrar o orgulho por fazer parte de grupo tão seleto:
– Havia teorias de que éramos alienígenas ou tínhamos um chip e não sabíamos, e, por isso, estávamos sendo pesquisados. Tudo na brincadeira. Sempre gostei de ser pesquisada. Quem diria que eu, uma simples mortal aqui em Pelotas, estava fazendo parte de um estudo que depois se tornou outros estudos. E há famílias inteiras participando da pesquisa!
Durante a infância e a adolescência, Natália foi estimulada pela mãe a participar de todas etapas da pesquisa sempre que elas eram anunciadas nos veículos de comunicação.
– Embora ela não tivesse muita noção do que era isso (a pesquisa), sempre fui incentivada a participar. Lembro que as meninas (pesquisadoras) iam na minha casa com a balança nas costas porque me pesavam e mediam – recorda.
Ainda jovem e sem entender a importância do estudo, Natália se questionava sobre ter que responder perguntas como o que comeu no dia anterior, por exemplo. Hoje, a advogada entende a necessidade de perguntas simples, mas que fizeram a diferença até para o desenvolvimento de programas da Organização Mundial de Saúde (OMS).
– Só de saber que ajudei a construir o estudo que se tornou A importância dos primeiros mil dias de vida já é motivo para sempre contribuir quando me chamarem. Hoje, o tema é bem mais comentado do que em anos anteriores. As pessoas, agora, chegam falando "tu é da coorte? Que legal!" – conta.
Certa vez, Natália ganhou dos pesquisadores uma camiseta da turma de 1982. E ela a usou até gastar o tecido. Como admite curtir assuntos envolvendo ufologia e, sempre lembrando daquela turma formada no extinto Orkut, a advogada não resistiu ao ver uma camiseta à venda com a imagem de um extraterrestre e o ano de 1982, em referência ao filme E.T. O Extraterrestre, de Steven Spielberg. Na mesma hora, a comprou. E, claro, a referência passou a ser a turma da coorte formada no mesmo ano de lançamento da película.