Se a doação de órgãos salva muitas vidas, a de corpos não fica atrás, ao contribuir para a formação de profissionais da área da saúde e colaborar com pesquisas científicas que, ao fim, podem ajudar a curar ou evitar doenças.
Nas universidades, os cadáveres são essenciais para o ensino de anatomia e para o desenvolvimento de estudos sobre enfermidades. O Ministério da Educação recomenda o uso de um corpo para cada 10 alunos de anatomia, mas essa é uma orientação difícil de ser cumprida. É que esse material de estudo é escasso, e a maioria das instituições de ensino ainda depende dos corpos que permanecem sem identificação ou não são reclamados nos institutos médicos legais. Uma alternativa tem sido a utilização de modelos artificiais e o estudo em 3D, porém, essas possibilidades não proporcionam o aprendizado de técnicas cirúrgicas, por exemplo. A falta desse contato com o corpo interfere na qualidade do ensino e na construção ética da relação do aluno com os pacientes.
Para tentar resolver essa carência, algumas universidades brasileiras têm feito campanhas para incentivar a doação. Na Capital, a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) implementou, em 2008, o Programa de Doação de Corpos para Ensino e Pesquisa. O objetivo é desenvolver uma campanha de informação e conscientização da população sobre a possibilidade da doação de corpos em vida.
A campanha tem apresentado bons resultados. Em nove anos de projeto, a UFCSPA recebeu mais de 80 doações e conta com uma lista de 479 candidatos cadastrados. Conforme a professora de anatomia Andréa Oxley da Rocha, coordenadora do programa, esse contato dos estudantes com o cadáver é indispensável:
— Durante a formação, é essencial estudar o corpo humano sem que isso seja feito apenas por meio de modelos e livros. Além do aprendizado sobre anatomia, morfofisiologia e fenômenos patológicos, o contato com o cadáver ensina os alunos a respeitar o ser humano e sua condição de vulnerabilidade.
O aumento no número de doações viabilizou atividades de extensão para aprofundar o aprendizado de técnicas cirúrgicas e oportunizou a criação do Museu de Anatomia, uma exposição temporária que ocorre todos os anos desde 2008 e mostra como os corpos doados são utilizados para o ensino. Em maio deste ano, foram recebidos cerca de 6 mil visitantes, sendo a maior parte estudantes de escolas públicas.
Exemplo de pai doador chega às duas filhas
Recentemente, a UFCSPA publicou uma análise que mostra o perfil dos doadores de corpos. Segundo Andréa, o senso comum é de que a maioria dos candidatos à doação são cidadãos de baixa renda – já que a família não precisa arcar com o transporte do corpo nem com o enterro –, ateus (visto que muitas religiões consideram o ato uma profanação do corpo) ou trabalhadores da área médica.
Entretanto, a pesquisa mostra características bem diferentes. Os dados revelam que a maioria dos voluntários ganha mais de três salários mínimos, tem curso superior completo e trabalha na área de prestação de serviços, de ensino ou administrativa. Quase todos (96%) seguem uma religião.
Nelly Dutra Vieira morreu em 2010, aos 77 anos, por complicações de um enfisema pulmonar. Em vida, ele determinou que doaria o corpo para a UFCSPA. Segundo as filhas Marinelly Vieira da Silva e Dinaiara Vasconcellos Vieira, o pai se tornou um doador após participar de um projeto do Hospital de Clínicas de Porto Alegre que estudava a doença.
— Ele recebia atendimento gratuito participando do estudo. Então, num ato de agradecimento, quis doar o corpo para a ciência, para que os pesquisadores seguissem estudando no corpo dele depois da morte — conta Dinaiara.
Antes de o corpo ser levado para a universidade, Nelly – que também era doador de órgãos – teve as córneas retiradas e ajudou duas pessoas a enxergar. Depois de vivenciar os fatos que colaboraram para a decisão do pai, Marinelly e Dinaiara também resolveram fazer o mesmo: são doadoras dos órgãos e do corpo.
— Não precisamos do corpo depois de morrer, mas podemos ajudar muita gente — justifica Dinaiara.
Como forma de gratidão a gestos de altruísmo como esses, desde 2010 o Programa de Doação de Corpos da UFCSPA realiza uma cerimônia ecumênica anual com as famílias dos doadores. Os próprios estudantes organizam o evento. Segundo Andréa, esse envolvimento deles é importante na compreensão de que, por trás daquele corpo, tem uma família e uma história. Na ocasião, os alunos fazem homenagens, acendem velas, entregam flores aos familiares e exibem um vídeo com fotos daqueles que doaram os corpos.
— Quando as famílias veem os alunos de avental, agradecendo, elas têm certeza de que fizeram a coisa certa. Abandonar a cultura do funeral é muito difícil. As pessoas ficam sem ter onde levar flores ou homenagear os entes. Essa cerimônia se presta a preencher um vazio do funeral, tornando-se um desfecho — diz Andréa.
Marinelly, filha de Nelly, vai todos os anos à cerimônia desde que o pai morreu.
— A primeira vez em que estive na cerimônia foi muito emocionante, eu estava sozinha, ninguém da família compareceu — relembra Marinelly. — Foi o momento em que eu pude me despedir do meu pai, porque ele morreu no hospital e o corpo foi direto para a universidade. Os alunos acenderam uma vela para cada doador, foi lindo.
SEJA UM DOADOR
— A doação do corpo é um ato pessoal que deve ser bem pensado e discutido com a família e com a instituição beneficiada para que todos as dúvidas sejam esclarecidas. Preferencialmente, a decisão deve ser registrada em vida com o consentimento da família – mas a iniciativa também pode partir dos familiares após a morte.
— Os candidatos devem entrar em contato com a universidade e preencher o termo de doação, que deve ser assinado também pelo familiar mais próximo como testemunha.
— Assinar o formulário não impede que a pessoa mude de ideia a qualquer momento. Se isto ocorrer, é importante informar a instituição.
— No momento da morte, o familiar do doador deverá fazer contato com a UFCSPA para comunicar o ocorrido e tomar as providências legais. A universidade providenciará o transporte do corpo. A remoção poderá ser feita após a realização do funeral, se esse for o desejo da família.
— A identificação dos doadores e as informações fornecidas permanecerão em sigilo.
— O corpo fica sob responsabilidade legal da instituição, que irá providenciar o armazenamento adequado e a disposição final, após a utilização.
Por que doar?
— Contribui com o aprendizado da anatomia humana e das variações anatômicas existentes nos indivíduos, o que é fundamental na formação de profissionais da área da saúde.
— O estudante adquire mais conhecimento para atender pacientes depois.
— Possibilita o aprendizado de técnicas cirúrgicas mais eficientes e menos invasivas.
— Ajuda no desenvolvimento das pesquisas médico-científicas.
Requisitos para doar
— Ter mais de 18 anos, ser morador de Porto Alegre ou Região Metropolitana e pesar menos de 100 kg (por questões de armazenamento). Pessoas que tenham morrido de forma violenta ou por doenças infectocontagiosas não podem ser doadoras.
— Mais informações podem ser obtidas pelo e-mail doacaodecorpo@ufcspa.edu.br ou pelos telefones (51) 3303-9000, (51) 3303-8727, das 8h às 17h.
Passo a passo da doação de corpos
1. Consulte o Programa de Doação de Corpos da UFCSPA.
2. Solicite o envio dos documentos necessários por e-mail, Correios ou acessando o site ufcspa.edu.br.
3. Preencha todos os documentos e formulários.
4. Registre o termo de doação de corpo em cartório _ são necessárias duas vias.
5. Guarde uma via do termo de doação de corpo e entregue os demais documentos na UFCSPA pessoalmente ou pelo correio.
6. Você receberá pelo correio o cartão de doador de corpo.