A dificuldade em solucionar furtos e depredações em um dos principais monumentos de Porto Alegre – a estátua em homenagem a Bento Gonçalves, na Avenida Azenha – evidencia um descaso que deixa em risco a própria memória da cidade.
Em um exemplo da falta de controle sobre o patrimônio histórico, a prefeitura não sabe quantas obras foram depredadas ou subtraídas no último ano, período em que só duas ocorrências foram registradas na Delegacia de Polícia de Proteção ao Meio Ambiente, responsável por investigar esse tipo de crime. Especialistas no assunto sustentam que o ataque a estátuas em ruas e parques é bem maior: só na Redenção, cinco dos 20 monumentos restaurados em julho de 2016 foram vandalizados menos de um mês após a entrega.
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– Muitas vezes, não sabemos quando exatamente o crime ocorreu. A investigação fica prejudicada porque não temos como identificar quem esteve no parque ou as câmeras de monitoramento da prefeitura não pegam as imagens no momento em que o fato aconteceu. É quase como procurar agulha no palheiro – explica a delegada Marina Goltz, titular da delegacia.
O presidente da Comissão de Monumentos da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, Sérgio Tomasini, diz que não é praxe registrar boletins de ocorrência de atos de vandalismo – segundo ele, não há informações suficientes sobre o ato, como data e horário, para fazer o comunicado à Polícia Civil. Nem há controle ou registros, na secretaria, de quando uma obra de arte é danificada.
– Existe uma equipe do DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana) que faz a limpeza dos monumentos periodicamente. Quando tem algum dano, essa equipe nos comunica, mas não sabemos quando o crime ocorreu. No momento, não temos efetivo para uma equipe de fiscalização – afirma Tomasini.
De acordo com o comandante geral da Guarda Municipal, Roben Roges da Silva Martins, não há efetivo e verba suficiente para cuidar dos monumentos o dia inteiro.
– Realizamos patrulhamento de toda a área (da cidade), 24 horas por dia, todos os dias. Também fazemos monitoramento por meio das câmeras que estão espalhadas pela cidade, mas elas não são programadas para gravar só um ponto fixo – explica o comandante, que destaca, ainda, a importância da participação do cidadão, fazendo denúncias por meio do telefone 153.
Para evitar que as obras sumam, uma estratégia de videomonitoramento, focada na filmagem dos monumentos, está sendo estudada pela administração municipal, mas não há nenhuma previsão para que a ideia saia do papel. No palpite de Tomasini, esse tipo de furto ocorre "sob encomenda":
– Normalmente, quando se rouba uma peça em bronze, já há uma encomenda, e o material é derretido logo e vendido para o ferro velho. E aí não temos como substituir, principalmente os mais antigos, porque muitas vezes o artista já morreu e não se tem mais a fôrma.
(Veja abaixo o Monumento a Bento Gonçalves em imagens recente e antiga. Ao final da reportagem, confira outros monumentos)
Prefeitura quer parceria com a UFRGS para preservação
Ana Marchesan, promotora de Justiça do Meio Ambiente, avalia que a situação é complicada justamente porque vândalos não costumam deixar rastros; isso inviabilizaria investigações. A promotora recorda que, dois anos atrás, um grupo de trabalho sobre vandalismo em monumentos foi criado, mas a ideia esbarrou na limitação de efetivo do Ministério Público e acabou sendo interrompida.
– Também teve uma parceria com o Sindicato das Indústrias da Construção Civil no Estado do Rio Grande do Sul (Sinduscon), quando algumas placas foram retiradas e substituídas por resina. É lamentável ter de fazer isso, mas a nossa realidade impõe esse tipo de medida. É um descaso com a história cultural da cidade – lembra Ana.
No momento, segundo Tomasini, a Secretaria Municipal de Cultura está catalogando os monumentos em um banco de dados para ter o registro e identificar quais são mais vulneráveis aos danos. Conforme ele, a comissão só fez levantamento fotográfico – o último em 2016 –, mas sem dados de depredação e roubo.
– Queremos fazer um trabalho em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para registrar essas obras e confeccionar réplicas a partir da digitalização 3D. Mas precisamos prever recursos, por isso a parceria não foi oficializada ainda – comenta Tomasini.
Professor do Laboratório de Design e Seleção de Materiais da UFRGS, Fabio Pinto da Silva conta que a prefeitura passou uma lista de monumentos considerados prioritários para digitalização e documentação. Com a tecnologia de digitalização 3D, seria possível reproduzir uma peça.
– A obra original é insubstituível, mas, em caso de furto ou depredação, ter um modelo 3D guardado seria uma das melhores opções para minimizar o prejuízo – avalia.
A ideia de ter um repositório 3D é, também, deixar as obras disponíveis online para que qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo, possa navegar por elas:
– A gente só preserva aquilo que ama, mas só ama aquilo que conhece. As pessoas passam todos os dias por vários elementos do nosso patrimônio cultural, mas nem se dão conta. Quando as pessoas conhecem melhor, passam a dar valor e ajudam a preservar.
"A tendência é só piorar", afirma especialista
A restauradora e pesquisadora Alice Prati acredita que a solução para esse tipo de problema passa pela educação e apropriação por parte da população.
– O cidadão precisa saber que o monumento é dele, que faz parte da história da cidade. E o poder público é o grande responsável pela falta de disciplina das pessoas e por fiscalização, preservação e restauração dos monumentos. É um trabalho que precisa começar na escola, falando da importância das obras para a história da cidade, e terminar no monumento, com a preservação e a manutenção – salienta.
Idealizadora do projeto S.O.S Monumentos – que busca revitalizar as obras e educar a população sobre a sua importância para a memória de Porto Alegre –, Alice opina que tão importante quanto o cidadão se apropriar de espaços públicos é a administração municipal saber gerenciar o patrimônio histórico:
– Para tratar um monumento, é preciso tratar o entorno, e o ser humano é o entorno. É mais fácil restaurar um monumento do que restaurar o ser humano.
O pesquisador, especialista em monumentos e autor do livro A Escultura Pública de Porto Alegre, José Francisco Alves, pontua que furtos e depredações acontecem desde o fim dos anos 1990 em picos:
– Pesquiso o assunto desde 1996. Em 1999, antes de começar o vandalismo, as pichações, antes de decair o serviço público, os monumentos começaram a ser furtados em massa. Há quase 20 anos é assim, e a tendência é só piorar.
Além de viajar pelo Brasil, Alves participa de congressos e palestras pelo mundo há 25 anos. A experiência e o tempo de pesquisa o fazem acreditar que "Porto Alegre é a cidade que mais teve destruição de arte pública e roubo no mundo em época de paz".
– Porto Alegre caiu muito, está perdendo toda a memória, diferente do resto do Brasil, que foi pra frente no cuidado urbano, no turismo, na manutenção do patrimônio histórico. Curitiba, Recife, Vitória, Salvador, Uberlândia e Belém são bons exemplos disso – finaliza.