As cerca de 250 famílias da antiga Ocupação Dois Irmãos, no bairro Rubem Berta, em Porto Alegre, estão em festa desde o início da semana. Das 40 comunidades que fazem parte do Fórum de Ocupações Urbanas da Região Metropolitana, esta é a primeira a conquistar o objetivo comum a todas: negociar a compra do terreno com o proprietário.
Com uma entrada de R$ 250 mil reais (R$ 1 mil por família), a associação que representa os ocupantes conseguiu negociar um acordo de compra com a Habitasul, dona da área, localizada no fim da Av. Gamal Abdel Nasser. As próximas parcelas - até que seja quitado o valor total dos 14 hectares, avaliados em R$ 1,4 milhão - serão divididas entre os moradores pelos próximos cinco anos.
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A conciliação, firmada na segunda-feira, foi homologada pela juíza Ivortiz Tomazia Marques Fernandes, da 1ª Vara Cível do Fórum Regional Sarandi, e suspendeu a reintegração de posse que ocorreria nesta terça.
- Quem quer vai à luta. E todo mundo foi. Vendendo móveis, trabalhando em dobro, pedindo ajuda de familiares e amigos, reunimos o que a Habitasul pediu de entrada. É um alívio conseguir suspender a desocupação com um acordo de compra - conta Júlio Cesar Lima, 28 anos, membro da associação, que deixará a casa da sogra para morar com a esposa na moradia nova.
Júlio Cesar deixará a casa da sogra para morar com a esposa na nova moradia
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS
Para o advogado Paulo René, que defende o Fórum, a conquista dos moradores deve-se, em grande parte, ao novo modelo de organização que as ocupações mais recentes apresentam: representadas por associações ou cooperativas, as comunidades têm lideranças, assessoria jurídica, conhecimento de seus direitos e funcionam como denunciadores de áreas usadas para a especulação imobiliária.
- As ocupações são exércitos de fiscalização dos vazios urbanos. No caso da Dois Irmãos, tentamos sair da via judicial e buscar a conciliação com a proprietária, mostrando que os ocupantes não querem nada de graça e se comprometem com o que for negociado - afirma o advogado, especialista em Direito Urbanístico.
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Conforme o diretor jurídico da Habitasul, Paulo Mallmann, o contrato entre a empresa e a associação dos ocupantes deve ser assinado em 16 de maio. No entanto, como o acordo já foi aprovado pela Justiça, a associação se adianta nos próximos passos: contratar um topógrafo para realizar o loteamento do espaço e acionar o DMAE e a CEEE para o fornecimento de água e luz.
Em paralelo a isso, os moradores dão início à construção de seus novos lares - que agora devem ser definitivos. Na manhã seguinte ao acordo judicial, já chegavam caminhões carregados com madeiras e mobiliários para as casas.
Aos 78 anos, a primeira casa própria
Dona Nei Silva dos Santos, 78 anos, não conseguia esconder a alegria na manhã desta terça. Sentada na cama, ela admirava toda a casa - que não tem divisórias -, olhava para cima, abria os braços e agradecia. Após quase oito décadas de vida, terá, pela primeira vez, uma moradia em seu nome.
- Eu pedi tanto por esse momento. Vim para a ocupação para realizar o meu sonho de morar sozinha, de poder plantar e criar animais no meu próprio terreno. Agora sinto que a luta valeu a pena. É como se tivesse ganhado na Mega Sena - conta a "vó", como é conhecida na vizinhança.
Ela chegou ao terreno em maio de 2014, assim que foram montadas as primeiras moradias. Em setembro, quando foi cumprida uma reintegração de posse, ela deixou a casa de madeira abaixo de chuva. No outro dia, de volta ao local, encontrou somente pedaços de madeira e móveis completamente destruídos.
Nesta terça, já em outro terreno, onde mora desde 20 de setembro - data da volta dos ocupantes à área -, ela se orgulhava em mostrar as abóboras que plantara e os coelhos que cria em um espaço cercado do quintal. Após o pagamento da parcela de R$ 1 mil - dinheiro que juntou com a venda de pastéis e ajuda dos quatro filhos -, o sentimento de posse estava aflorescido como nunca.
- Aluguel, nunca mais! - repetia.
Fátima guardou o valor de quatro meses de aluguel e construiu a própria casa
Foto: Ronaldo Bernardi/Agência RBS
Dois terrenos ao lado de onde mora Nei, Fátima Mendes, 54 anos, comemorava a notícia na varanda de casa, com outras duas vizinhas. A massoterapeuta também faz parte da ocupação desde que ela surgiu. Foi uma opção guardar o valor que gastaria com aluguel, "morar no mato", como define, e tentar conquistar de vez a própria casa.
Com o dinheiro que economizou enquanto esteve na ocupação entre maio e setembro passado, cerca de R$ 2 mil, Fátima construiu uma ampla e organizada casa de madeira, onde mora com a filha.
- Gostaria que cada pedacinho vazio de terra fosse ocupado por pessoas batalhadoras, que sabem o que querem. A luta pela moradia é possível. Agora, sem ter mais gasto com aluguel, vai sobrar dinheiro para arrumar a casa, comprar alguns móveis e até uma máquina de lavar roupa, coisa que pobre não ousa ter - projeta Fátima.
Histórico
- Os primeiros barracos e casas começam a ser erguidos no terreno localizado no fim da Av. Gamal Abdel Nasser, no bairro Rubem Berta, em 1º de maio de 2014. Um primeiro acordo é firmado com a Habitasul - mas acabou não sendo cumprido pela associação da época. A empresa, então, rescindiu o contrato. Ocupantes contam que, após a quebra do acordo, e sem a construção das casas ou a devolução do dinheiro, pessoas começaram a viver lá de forma irregular.
Área própria
Moradores de ocupação fecham acordo e compram terreno de 14 hectares em Porto Alegre
Moradores da antiga Ocupação Dois Irmãos, que entraram na área em maio de 2014, vão parcelar R$ 1,4 milhão em cinco anos
Bruna Scirea
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