
* Naturalizado islandês, bacharel em letras islandesas e tradução pela Universidade da Islândia e fundador da Sagarana forlag, microeditora que publica literatura brasileira em islandês e vice-versa.
A primeira vez em que ouvi falar da Islândia foi nas páginas de Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, que ironicamente nunca pôs os pés na ilha. Então com 12 anos e vivendo em Alvorada, numa realidade tão distante da Islândia quanto a Paris de Verne distava da Lua, nunca poderia imaginar que, duas décadas depois, as ruas de Reykjavík, donde o professor Lidenbrock e o sobrinho Axel partiram para Snæfellsnes em busca do acesso ao centro da Terra, seriam parte do meu cotidiano.
Anos mais tarde, empenhado na tarefa fútil de traduzir os sonetos de Jorge Luis Borges ao português, a Islândia novamente cruzou meu caminho, já agora abrindo uma vereda sem volta. Os escritos de Borges, que desde a juventude nutria um interesse pela literatura islandesa medieval, especialmente pelas sagas, são salpicados de referências ao país, suas personagens fabulosas e seus autores anônimos.
Cativado por essas histórias, especialmente pela obra de Snorri Sturluson (1179 - 1241), um dos poucos autores de sagas cujo nome se sabe com alguma certeza, vim estudar islandês na universidade nacional aqui em Reykjavík. A Islândia, colonizada por noruegueses a partir do fim do século 9º, só conheceu o alfabeto latino com a cristianização do país no ano 1000. A partir daí, porém, a febre da escrita tomou conta dos islandeses, cujo patrimônio histórico mais importante não é formado por castelos ou monumentos, mas sim por manuscritos antiquíssimos que preservam narrativas locais e o legado nórdico trazido pelos colonos escandinavos e extraviado com o tempo nos países de origem.
As sagas, contribuição-mor da Islândia à cultura europeia, são narrativas em prosa que descrevem de forma estilizada eventos supostamente ocorridos na época em que os primeiros clãs que colonizaram o país disputavam a hegemonia e exerciam sua influência e força sem os entraves impostos por um poder central, que aqui inexistia. Descobertas por estudiosos europeus desde o século 18 e divulgadas em traduções, as sagas são hoje parte do cânone literário, principalmente nos países de expressão nórdica, alemã e inglesa.
O estilo seco e abrupto da prosa medieval islandesa, comparada à qual a retórica abundante das línguas neolatinas soa quase barroca, influenciou não apenas a literatura contemporânea da Islândia, mas também a obra literária de autores de diversas nacionalidades. O próprio Borges se gabava em entrevistas de ter conseguido imitar o tom das sagas em sua obra, com destaque para La Intrusa, que o argentino considerava o mais bem-sucedido conto de sua lavra escrito "no estilo das sagas islandesas".
Dom Pedro II era um conhecido amigo dos livros e da literatura, tendo inclusive sido um dos pioneiros no Brasil na versão direta do árabe de contos do Livro das Mil Noites e Uma Noites. Consta que, numa viagem à Europa em 1876, o imperador tradutor, então com apenas 35 anos, visitou a Real Biblioteca em Copenhague, que na época ainda abrigava manuscritos valiosos como o Codex Regius, compilado na Islândia no século 13 e repatriado em 1971, e que preserva a Edda Poética, coletânea de poemas mitológicos que narram episódios sobre antigas deidades nórdicas pré-cristãs e versões poéticas do ciclo dos Völsungos, personagens míticas também retratadas na Völsunga saga. Esta e outras sagas islandesas vêm sendo colocadas finalmente à disposição do leitor brasileiro pelas mãos do professor Theo Moosburger (UFPR), que acaba de defender em Florianópolis sua tese de doutorado, a tradução na íntegra da Brennu-Njáls saga (Saga de Njáll), por muitos considerada o ápice da literatura das sagas.
Paralelamente, a literatura contemporânea islandesa, filha dileta da tradição das sagas, aos poucos também vai ganhando espaço nas estantes brasileiras graças sobretudo ao trabalho de formiguinha do finlandês Pasi Loman, agente literário radicado em São Paulo que desde 2011 vem botando as literaturas nórdicas no mapa da indústria livreira nacional. Na onda deflagrada pela Feira do Livro de Frankfurt daquele ano, quando a Islândia foi a "patrona" do evento, eu mesmo traduzi algumas dessas obras, das quais destaco aqui A Raposa Sombria, do escritor Sjón, também conhecido por ser letrista da Björk, autor islandês convidado recentemente para a edição de 2015 da Feira do Livro de Porto Alegre.
Noutro reconhecimento importante à vocação literária do país, Reykjavík conquistou também em 2011 o título de Cidade Literária da Unesco. Entre outras iniciativas, foram espalhadas pela cidade placas em locais de interesse literário, nalguns dos quais é possível inclusive ouvir via Internet sem fio trechos de obras com cenário na capital da Islândia. Nessa biblioteca de Babel ao ar livre, paraíso borgeano cravado no norte do mundo em que são publicados cinco livros por ano a cada mil habitantes (o dobro da taxa dos vizinhos escandinavos, também leitores vorazes), é onde vivo desde 2002.